domingo, 29 de abril de 2012

Rio de Janeiro III

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É DOMINGO, EU SEI   (Moacyr Félix)
                       
                                   A Geraldinho Carneiro


Meu poema, às vezes, é como o urubu
a descer das árvores da melancolia
sobre a carniça deixada nos quintais
do que é como se fosse amor humano.


É domingo, eu sei, e o sol é uma alegria elíptica
lá fora, distante, impassivelmente distante
da raiz escura desta cidade em mim.
Após tantas perdas de si mesmo na semana
o homem não sabe mais o que é o ócio
e corre e corre para a praia e para os campos
em longos enterros de medo de ver-se como é.


É domingo, eu sei, e os bares estão alegres
enquanto os loucos, somente os loucos, são
a matéria-prima e selvática da autenticidade
da vida. Da vida não matemática, da vida a sonhar-se
uma liberdade plena, uma canção sem muros
no poço fechado em que agoniza a alma
das verdades do dia. Ah, as alegrias
que o ser humano perde quando e sempre
a infância, o limpo espanto da infância
é extirpado nele por artimanhas de um cálculo
alegórico e grotesco como o salário dos humildes.


É por isso que sou radical e quero
a revolução do homem quando é a vida
a trabalhar-se no emaranhado das raízes
em que se ergue este sol como bandeira
no coração desta manhã que pulsa
em mim a escuridão desta cidade inteira.




FELICIDADE   (Geraldo Carneiro)


meu escasso repertório de metáforas
não dá conta da vida, que é uma flor
que se alastra e não sabe do seu lastro.
não me cansei de voar na ave-vida.
hoje encarei de perto o Pão de Açúcar
e me senti suspenso
nas aventuras que penso e planejo
até que a morte me convença
e me vença num combate,
pois só assim haverá de me arrancar
dessa cidade-esplendor que se lança
                                          sobre o mar:
é aqui que sonho todos os amares
a vida-mar em que navegarei
por avesso a viagens noutro céu
que não essa ave-rara: a Guanabara.




AGOSTO   (Ferreira Gullar)


Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
               mercados, butiques,
viajo
              num ônibus Estrada de Ferro–Leblon.
              Volto do trabalho, a noite em meio,
              fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
             que a vida
             eu a compro à vista aos donos do mundo.
             Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

             Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
             Do salário injusto,
             da punição injusta,
             da humilhação, da tortura,
             do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poema
uma bandeira.




ELEGIA INÚTIL   (Manuel Bandeira)


Lágrimas, duas a duas,
choraram dentro de mim,
ao ler que o Prefeito Alvim
mudou o nome de muitas ruas.

Nomes de ruas que havia
no Rio de antigamente!
(A respeito, minha gente,
ainda há a Rua da Alegria?)

Eram tão lindos! Assim:
Rua Bela da Princesa
(que distinção, que beleza!
nome que cheira a jardim).

Rua Direita da Sé:
nome firme, nome nobre;
nome em que nada há que dobre;
nome-afirmação de fé!

Havia as ruas de ofício:
Dos Ourives, dos Latoeiros...
Becos: Beco dos Ferreiros...
E havia as ruas do vício...

Muito nome foi mudado,
mas o novo não pegou:
nunca ninguém não falou
senão Largo do Machado.

(Este nome pode ser,
quando muito, acrescentado,
assim, Largo do Machado
de Assis gosto de dizer.

Na do Catete, contou-me
Z., o mestre escreveu Brás Cubas.
Darás na casa se subas
pela rua do seu nome.)

Esta Rua do Ouvidor
já foi Caminho do Mar!
(Ouvidor pode passar,
mas o antigo era melhor.)

Não tens laranjas, mas cheiras
aos frutos da minha infância:
ah inesquecível fragrância
da que ainda és das Laranjeiras!

O Largo da Mãe do Bispo
há muito tempo acabou-se.
(E hoje acabou o que era doce
ainda: a Rua do Bispo...)

Vais ter um nome pequeno,
Rua do Jogo da Bola!
Vais ter um nome pachola,
ai Travessa do Sereno!


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