sexta-feira, 29 de abril de 2011

Sophia de Mello Breyner Andresen

Acabo de ser brindada com um bem cuidado exemplar de um livro editado pela Companhia das Letras, com uma seleção de poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen, renomada poeta portuguesa, falecida em 2004.

Eis alguns de seus belos poemas:



Eu Me Perdi


Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar



Esta Gente


Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo



Bach Segóvia Guitarra


A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra

A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada

Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa

Por companheira tenho
A voz da guitarra

E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada

E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada



A Noite e a Casa


A noite reúne a casa e o seu silêncio
Desde o alicerce desde o fundamento
Até à flor imóvel
Apenas se ouve bater o relógio do tempo

A noite reúne a casa a seu destino

Nada agora se dispersa se divide
Tudo está como o cipreste atento

O vazio caminha em seus espaços vivos



Por Delicadeza


Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só tres passos dei

Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado
Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei

Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também eu direi:

"Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida"



Poema


Cantaremos o desencontro:
O limiar e o linear perdidos

Cantaremos o desencontro:
A vida errada num país errado
Novos ratos mostram a avidez antiga




Perfeito é não quebrar
A imaginária linha

Exata é a recusa
E puro é o nojo.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Tempo para Abbas Kiarostami

Constato que uma síndrome nos acomete com frequência: a do tempo desperdiçado, com a consequente busca pela compensação ou reparo.



Uns lamentam o tempo perdido fora do carregar de pedras na estrada única que leva ao sucesso.


Outros lamentam o tempo detido em bares e botequins ou em conversas que só podem levar ao breu ou, no máximo, a lugar nenhum.


Outros ainda, mais sofisticados na neura comum, condenam até o tempo dedicado a estudos, leituras, viagens, afazeres fora de propósito específico, valor ou meta bem determinada.


Há os que vão mais longe e chegam ao cúmulo de execrar o tempo despendido uma vida inteira... no trabalho!!!


Sem desmerecer outras possibilidades para nos posicionarmos diante das questões que envolvem a noção de tempo em nossas vidas, arrisco uma boa sugestão e mantenho a pincelada na questão só para emoldurar as pérolas de hoje.



Sugiro que nada há de melhor do que uma boa sessão de filmes de Abbas Kiarostami, o cineasta iraniano, a nos instigar à atemporalidade, às viagens de todo tipo, ao movimento, ao atravessar de barreiras, ao enfrentamento tanto dos acasos quanto das obviedades, à comunicação frenética de nosso tempo em contextos variados, à verificação da singeleza e do delicado em roupagens de permanente mutação, tudo isso como pano de fundo para o nosso constante buscar de aconchego físico, mental e espiritual. Sem contar com a injeção de autoestima a que somos presenteados, pela oferta generosa de um cardápio intelectual digno e respeitoso servido de bandeja!


Quatro filmes de Abbas Kiarostami, importantes não só para os cinéfilos de plantão, mas para aqueles que buscam se antenar com as linguagens de fronteira de nossa precária civilização:


1) Gosto de cereja (1997)
2) O vento nos levará (1999)
3) Dez (2002)

4) Cópia fiel (2010).



Um deleite de incomensurável conteúdo residual para reflexões e considerações ad eternum.

E por falar em deleite, compartilho com os nobres leitores deste Diablog nº14 alguns versos magníficos do meu querido amigo e parceiro, um dos mais geniais poetas que conheço: Cacau Leal.


Chave do Tempo  (Cacau Leal)

pousamos na beira do rio sem nome
os seixos, um mistério de milênios,
dormem indatados

polidos antes pelas nossas lágrimas
os seixos rolam agora
sob o impulso dos dedos
onde reside a chave do tempo

de noite
na escuridão
sozinhos e sem luar
como podem –
alguém há de perguntar –
estes ovos inanimados
brilhar?

e eu,
subtraído de tua claridade,
guardo silêncio
eu, não sei se eu os seixos que apago



Cena XXIX  (do livro Cabo Frio: o vento fala, de Cacau Leal)

...aqui sim começava uma nova etapa aventura sol e lua e música dos
ventos e os brancos imensos e os azuis do céu do mar e os lençóis d'areia
dunas luz caju urucum pimenta vermelha sal grosso afagos afetos
camarão siri ciclones de estrelas anzol espinhos coco abacaxi lagartos
restinga maracujá moinhos conchas olhos cabeça coração temporais
e peixes e barcos e cal e calcário musgos verdes coqueirais algas puçá
pássaros sol água ferrosa arrastão praia manhãs crepúsculo noite
amanhã hoje vozes pão café papagaio varanda pode não pode aceito
vou cheguei estou sei sonhei virá virão porta soleira maré açúcar sal
farinha areia portão lampião mosquitos mormaço chuvas telhas sono
flores mel cirros lágrimas varal qual mal bem bom não vai vem...



Lição de um gato siamês  (Ferreira Gullar)

Só agora sei
que existe eternidade
é a duração
      finita
      da minha precariedade

O tempo fora
de mim
           é relativo
mas não é o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
– dura eternamente
   enquanto vivo

E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)



Canção do dia de sempre  (Mario Quintana)

Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
como essas nuvens do céu...

E só ganhar, toda a vida,
inexperiência...esperança...

E a rosa louca dos ventos
presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
das outras vezes perdidas,

atiro a rosa do sonho
nas tuas mãos distraídas...

domingo, 17 de abril de 2011

Ciorânicos I, II, III, IV

Lavra pessimista     (I)


Não se fazem poemas em meio a desatinos
Não posso escrever poemas neste mundo louco

Impossível o nascer de poemas sob bombardeios
De notícias desvairadas sobre tudo e todos


O poema se esconde debaixo do travesseiro
Onde sonhos ainda escapam às verdades


O poema se esquiva qual sombra na madrugada
A vasculhar em vielas e becos insondáveis


E enfrenta frio, dores, chuvas de granizo
Penetrando névoas, nuvens e neblinas


E encontra a si mesmo assim meio perdido
Tropeçando vez por outra em suas rimas


O poema é vento e seu açoite
O poema é brado em plena noite
O poema é louco e teimoso


Seu sorriso de escárnio meio muxoxo
É tudo o que posso no momento alcançar


Mas o poema é hábil e sutil, regente
Nas artes mágicas do rompante
Revelando-se iluminado e quente
Surpreendentemente me alcança
Reinventando salões de primavera
Como última novidade urgente
Da lavra pessimista do poeta
                                             (V.V.)





Ciorânico     (II)


Hipótese mal formulada
Tese sem comprovação
Tendência ao negativismo
Noticiários de televisão
Delta menor que zero
Casos sem solução
Nenhuma nesga de luz
Teorias sem unificação


Propensão à vadiagem
Erro crasso na dosagem
Desvio certo da bagagem
Déficit de aprendizagem
Estrago pela ferrugem
Compulsória hospedagem
Drama inócuo em longa metragem
Desgraça pouca é bobagem
                                                (V.V.)





Recurso à mão     (III)


Desta janela de um oitavo andar
Reconheço pedras, poucos verdes, chão
Asfalto gasto, gastas novidades
Pássaros que ainda resistem com disposição
O vendedor de balas, doces, mariolas, pirulitos
Que me amedrontava infância e delírios
Com sua verruga exposta sem recato
E seu topete mal ajambrado de glutão
Tudo faz recheio audível e ameniza a tarde
Mas talvez esse tudo não passe de impressão
Pois a vida se processa em mil lampejos
Com seus achos, sintos, pensos, imaginos
Sujeita a estúpidas e várias
Displicentes, incoerentes
Inocentes desmedidas
Além de múltiplos recursos de interpretação


Desta janela de um oitavo andar
Minha imobilidade festeja o salto único
Em que construo em vão meus desatinos
E despejo meus vazios nos vazios do mundo
                                                                   (V.V.)




Pequenez     (IV)


Contenta-te com problemas fáceis

Felicita-te por desafios medíocres

Envolve-te em relações vazias

Atrofia tua mente

Despreza o próximo

Finge o exercício de tua cidadania

Trapaceia no domínio do lar

Deseduca teus filhos para o amor

Ou não os tenhas, que é bem mais barato

Serás alguém, com certeza

Outros preferem rezar
                                     (V.V.)




      AFORISMOS IMPLICANTES   (uma pequena amostra da edição IV)  


 Por um triz é o estado de tudo.
   
Grandes violências têm fala leve e delicada.
  
Enterro triste é quando não há despedida.

 Palavras e silêncios dizem mais do que almejamos.

  
A obra que cativa contém todas as risadas do mundo.
  
Até no caminho do meio, cuidado, teu rastro deixa cheiro.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Liberdades

Desconfio que tenho uma tendência (nada original) à adição.

Anos de vida nos trazem não só manias, mas também alguns hábitos bem selecionados.

Meu grande vício é a liberdade.

Dizem as más línguas que é por isso que não me caso.

Digo às más línguas que é por isso que não me faltam companheiros,
além das almejadas felicidades.




Liberdade (Fernando Pessoa)

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal,
Como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...




Ricardo Reis, in "Odes" :


Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre — sem dita nem desdita,
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.
A quem deuses concedem
Nada, tem liberdade.




Liberdade Condicional (Mário Quintana)


Poderás ir até a esquina
Comprar cigarros e voltar
Ou mudar-te para a China
– só não podes sair de onde tu estás.




Abel Silva, in "Só Uma Palavra me Devora"

A ALMA DA AVE É O OVO

A ARMA DA AVE É O VOO




Liberdade (Vera Versiani)

Cappuccino com tomate, linguiça e canela
Vatapá com chocolate, abacaxi e coentro
No auge da tempestade abro portas e janelas
Liberdade é o que carrego aqui dentro.



Pirâmide (Carlito Azevedo)

Quando
Retiraram o
último bloco de
pedra que a prendia
ao solo a pirâmide
flutuou




Todos os caminhos levam a uma só placa de
sinalização: "Mantenha distância". (V.V.)


Silêncio, todos estamos dormindo! (V.V.)


Aproveitem, pois amanhã não haverá espaço,
ar respirável ou justiça de qualquer espécie. (V.V.)


Coragem, o que quer que faça não pesará em
nada no correr da carruagem. (V.V.)


Confortem-se, os homens de hoje não estarão
mais aqui amanhã. (V.V.)


Ânimo, as crianças serão mais burras no futuro e
não saberão apontar os culpados. (V.V.)


Movam-se, qualquer gesto original será bem-vindo
no mar de mesmices generalizadas. (V.V.)


Melhor que pedir desculpas é não ter que fazê-lo.
Ninguém é perfeitamente idiota, a não ser que
exercite o sê-lo. (V.V.)