Arte, poesia, cinema, literatura, música, cultura popular: reflexões, considerações, aforismos, poemas...
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
Woody Allen
De "Sem Plumas", livro de textos hilários de Woody Allen, publicado em 1975:
(tradução de Ruy Castro)
[Se os Impressionistas Tivessem Sido Dentistas]
Prezado Theo,
Até quando a vida será tão ingrata?
Estou roído pelo desespero e minha cabeça lateja!
A Sra. Sol Schwimmer está me processando porque fiz sua ponte de acordo com minha própria inspiração,
e não para se ajustar à sua ridícula boca.
Mas é claro! Não sou um comerciante barato para trabalhar de encomenda!
Achei que sua ponte devia ser enorme e exuberante, com dentes selvagens e explosivos,
apontando para todas as direções.
E agora ela está aborrecida porque eles não cabem em sua boca.
É tão burguesa e burra que gostaria de matá-la!
Tentei fazer com que a ponte entrasse à força, mas os dentes continuam para fora como pingentes
de um candelabro.
Para mim, está lindo! Mas ela reclama que não consegue mastigar.
E que importa se ela consegue mastigar ou não?
Theo, não vou suportar isto por muito tempo.
Perguntei a Cézanne se ele dividiria o consultório comigo, mas Cézanne está velho,
suas mãos tremem e, para segurar os instrumentos, têm de ser amarrados em seus pulsos.
Com isso, falta-lhe precisão e, ao trabalhar na boca de alguém, faz mais estragos que consertos. O que fazer?
Vincent.
.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Denise Stoklos
Eis um dos releases:
“CARTA AO PAI”, de Kafka
Montagem de “Carta ao Pai”(ou “Vamos Trocar Feromônios”) inserida no repertório permanente do “Teatro Essencial”, que completa 45 anos. Implícito o agradecimento ao Sesc SP, na pessoa admirável do professor Danilo Santos de Miranda, que tem me apoiado continuamente e a tantas outras companhias teatrais.
Sigo nesta montagem minha linha de trabalho na qual o ator é o fundamento da cena e sua contingência sociopolítica é o ponto de interpretação. Nesta “Carta ao Pai” entrego fragmentos do texto de Kafka.
Não pude deixar de atribuir ao filho espancado moralmente pelo pai deste texto clássico, como subtexto, o “povo brasileiro” e o pai o “estado” e mais aproximadamente ainda o filho a “classe teatral” e o pai as instituições que a destituem...
O teatro, que é “reflexão para a liberdade”, não faz girar o mundo de negócios, antes, é inconveniente até para o “mundo que gira”, que conta, acumula, mas pouco reflete. Que o resultado seja uma sincera letra de cancioneiro popular sertanejo autêntico. Um apontamento da dor psíquica imensa no qual nossas origens, o Pai/Caipira/Brasil vem “fazendo picadinho” de seus filhos em seus anseios de considerar-se corpo digno de existir. Um sistema que tende a esquecer caminhos que libertam. Tendo por base o levantamento de uma memória de 45 anos de experiência, que isso seja como um alerta para que histórias não se percam. É sempre e cada vez mais hora de Kafka, não?
Denise Stoklos
agosto 2013
Não pude deixar de atribuir ao filho espancado moralmente pelo pai deste texto clássico, como subtexto, o “povo brasileiro” e o pai o “estado” e mais aproximadamente ainda o filho a “classe teatral” e o pai as instituições que a destituem...
O teatro, que é “reflexão para a liberdade”, não faz girar o mundo de negócios, antes, é inconveniente até para o “mundo que gira”, que conta, acumula, mas pouco reflete. Que o resultado seja uma sincera letra de cancioneiro popular sertanejo autêntico. Um apontamento da dor psíquica imensa no qual nossas origens, o Pai/Caipira/Brasil vem “fazendo picadinho” de seus filhos em seus anseios de considerar-se corpo digno de existir. Um sistema que tende a esquecer caminhos que libertam. Tendo por base o levantamento de uma memória de 45 anos de experiência, que isso seja como um alerta para que histórias não se percam. É sempre e cada vez mais hora de Kafka, não?
Denise Stoklos
agosto 2013
Temas universais (amor, paixões, impenetrabilidade dos eus, violências, biografias e suas incontáveis possibilidades de leituras, opressão, liberdade, grades, cercas, prisões, vigilâncias, desejos...) tratados de maneira inteligente, sincera e, o que é melhor, bem-humorada.
Denise Stoklos aprimora a cada dia seu dizer através do corpo e gestual: movimentos e expressões que conseguem, para nosso proveito, fazer desfilar em bandeja de prata o que de melhor pode nos ser oferecido produtivamente para reflexões em todo âmbito de nossas vidinhas e picuinhas.
Seu teatro essencial é grandioso, de múltiplos desdobramentos e significados que se entrelaçam. Não é só aquele em que "o ator é o autor, diretor e coreógrafo de si mesmo". Ele é também o pão oferecido a nós – pobres mortais pecadores, de frequentes ingenuidades, inconsciências, ignorâncias, cegueiras e boas intenções inapropriadas ou ferinas – como recriação de um milagre bíblico em que encontramos multiplicado o alimento capaz de nos possibilitar luz, calor e esperança, além de boa dose de se-mancol, é claro.
segunda-feira, 14 de outubro de 2013
Uma gota de Álvaro de Campos
Hoje reli o gigantesco poema "Passagem das Horas" do heterônimo (de minha preferência) de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos.
Colho alguns dos versos que me marcaram a adolescência e me cativaram de forma definitiva, mesmo que minha compreensão, exigência e alcance poéticos mantenham seu passo regular de transformação ao longo do tempo:
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Fernando Pessoa
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
Em março deste ano perdi meu então mais frequente, precioso e querido interlocutor em questões primordialmente filosófico-poéticas, mas também musicais – além de abobrinhas salutares, algumas nem tanto, mas que, no conjunto, configuravam tudo aquilo que era uma espécie de procura, investigação. Trocas de figurinhas que faziam valer em dobro meus minutos diários.
A morte de Raul Macedo, amigo e familiar, poeta de valor incalculável para mim, jovem pensador que surpreendia por sua incrível e quase inexplicável maturidade intelectual e espiritual, me tirou o tapete, me desnorteou, paralisou, esvaziou...
Depois de muitos meses rarefeita e dispersa por estas bandas, experimentando outras novas, gigantes e sutis emoções nesse intricado motor fazedor de estranhamentos e convulsões de entranhas que é a vida, estou de volta, não sei se pro meu aconchego, mas para a vadiagem regular tecida na forma de minha preferência: a caótica.
Que eu seja bem-vinda!
An eye for an eye only leads to more blindness.
Zelosa (Margaret Atwood)
Como foi que me tornei tão zelosa? Fui sempre assim?
Saindo por aí quando criança com uma vassourinha e uma pá,
varrendo a sujeira que eu não tinha feito,
ou lá fora no jardim com um ancinho mirrado,
tirando o mato do jardim dos outros
– a sujeira era soprada de volta, o mato crescia, apesar dos meus esforços –
e com uma carranca de desaprovação o tempo todo
ante a irresponsabilidade dos outros, e a minha própria escravidão.
Eu não executava essas tarefas de bom grado.
Queria estar no rio, ou dançando,
mas algo me segurava pela nuca.
Essa também sou eu, anos mais tarde, um caco, de olhos roxos,
porque o que tinha de ser terminado não fora, e fiquei acordada até tarde,
rabugenta como uma cobra, tomando café demais,
e ainda mais adiante, aqueles grupos compostos de murmúrios
E repreensões, e a exortação padrão:
Alguém devia fazer alguma coisa!
Era a minha mão se levantando rapidamente.
Mas eu me demiti. Descartei o aperto do meu eco.
Decidi usar óculos escuros, e um colar
adornado com a palavra dourada NÃO,
e comer flores que não cultivei.
Por que me sinto, contudo, tão responsável
pelo choro que vem das casas em ruínas,
por defeitos de nascença e guerras injustas,
e a tristeza macia e insuportável
que ecoa das estrelas distantes?
– a sujeira era soprada de volta, o mato crescia, apesar dos meus esforços –
e com uma carranca de desaprovação o tempo todo
ante a irresponsabilidade dos outros, e a minha própria escravidão.
Eu não executava essas tarefas de bom grado.
Queria estar no rio, ou dançando,
mas algo me segurava pela nuca.
Essa também sou eu, anos mais tarde, um caco, de olhos roxos,
porque o que tinha de ser terminado não fora, e fiquei acordada até tarde,
rabugenta como uma cobra, tomando café demais,
e ainda mais adiante, aqueles grupos compostos de murmúrios
E repreensões, e a exortação padrão:
Alguém devia fazer alguma coisa!
Era a minha mão se levantando rapidamente.
Mas eu me demiti. Descartei o aperto do meu eco.
Decidi usar óculos escuros, e um colar
adornado com a palavra dourada NÃO,
e comer flores que não cultivei.
Por que me sinto, contudo, tão responsável
pelo choro que vem das casas em ruínas,
por defeitos de nascença e guerras injustas,
e a tristeza macia e insuportável
que ecoa das estrelas distantes?
segunda-feira, 12 de agosto de 2013
Dois poemas de Giuseppe Ghiaroni (1919-1998), poeta e jornalista mineiro que viveu no Rio de Janeiro, escreveu novelas para a Rádio Nacional e teve seus poemas lidos com sucesso naquela emissora:
Economia
Dá de ti. Dá de ti quanto puderes:
o talento, a energia, o coração.
Dá de ti para os homens e as mulheres
como as árvores dão e as fontes dão.
Não somente os sapatos que não queres
e a capa que não usas no verão.
Darás tudo o que fores e tiveres:
o talento, a energia, o coração.
Darás sem refletir, sem ser notado,
de modo que ninguém diga obrigado
nem te deva dinheiro ou gratidão.
E com que espanto notarás, um dia,
que viveste fazendo economia
de talento, energia e coração!...
A Máquina de Escrever
Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem de meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.
Vende esse rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.
Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.
Vende, além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.
Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.
Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.
Podes vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.
Poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas, tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.
Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! Ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!
Quantas vezes esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.
Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.
Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.
Deixa-a morrer também quando eu morrer,
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.
Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
Poemas de Adonis
Selecionei algumas pequenas maravilhas do poeta Adonis.
Se é o maior poeta árabe vivo, não sei. O que sei é que ele é imprescindível.
Tradução de Michel Sleiman.
Espelho do século XX
Caixão revestido com rosto de menino
livro escrito nas entranhas de um corvo
fera que avança levando uma flor
rocha que respira nos pulmões de um louco
assim é
o século XX
Espelho das nuvens
Asas
são, mas de cera
e a chuva a torrente não
é chuva – são barcos levando lágrimas.
Espelho do tempo e do olho
Cantei, disse aos dias:
do sangue ergui cidades
que geram ritmos
disse aos dias: estendi-o
como um ramo saudoso
que na seiva me leva ilumina a morte, a mortalha
cantei disse aos dias:
este é o meu sangue
(certa essência talvez de
certa ciência
se a declarasse diriam:
adora ídolos)
cantei desjuntei – dos cílios que o teciam –
o sonho e juntei ao tempo
o olho.
Árvore do Oriente
Me fiz espelho
refleti tudo
mudei em teu fogo a cerimônia da água e da vegetação
mudei voz e apelo,
passei a te ver em dois
tu e esta pérola que nada em meus olhos
eu e a água nos fizemos amantes
nasço em nome da água
nasce em mim a água
eu
e a água
nos replicamos.
O signo
Fundi fogo e neve
o fogo não me compreenderá o bosque e a neve
permanecerei obscuro e calmo
a habitar flores e pedras
a esconder-me
a perscrutar
a ver
a ondular
como a luz entre a magia e o signo.
Se é o maior poeta árabe vivo, não sei. O que sei é que ele é imprescindível.
Tradução de Michel Sleiman.
Espelho do século XX
Caixão revestido com rosto de menino
livro escrito nas entranhas de um corvo
fera que avança levando uma flor
rocha que respira nos pulmões de um louco
assim é
o século XX
Espelho das nuvens
Asas
são, mas de cera
e a chuva a torrente não
é chuva – são barcos levando lágrimas.
Espelho do tempo e do olho
Cantei, disse aos dias:
do sangue ergui cidades
que geram ritmos
disse aos dias: estendi-o
como um ramo saudoso
que na seiva me leva ilumina a morte, a mortalha
cantei disse aos dias:
este é o meu sangue
(certa essência talvez de
certa ciência
se a declarasse diriam:
adora ídolos)
cantei desjuntei – dos cílios que o teciam –
o sonho e juntei ao tempo
o olho.
Árvore do Oriente
Me fiz espelho
refleti tudo
mudei em teu fogo a cerimônia da água e da vegetação
mudei voz e apelo,
passei a te ver em dois
tu e esta pérola que nada em meus olhos
eu e a água nos fizemos amantes
nasço em nome da água
nasce em mim a água
eu
e a água
nos replicamos.
O signo
Fundi fogo e neve
o fogo não me compreenderá o bosque e a neve
permanecerei obscuro e calmo
a habitar flores e pedras
a esconder-me
a perscrutar
a ver
a ondular
como a luz entre a magia e o signo.
terça-feira, 12 de março de 2013
Sobre o filme Argo. Argh!!
(Jorge de Souza Santos)
Durante o governo do presidente Carter, dos EUA, no episódio da invasão da
embaixada americana no Irã, nos anos 1979/1980, logo após a deposição do Xá Rezha
Pahlevi na revolução que levou o Aiatolá Khomeini ao poder, seis americanos
refugiaram-se na embaixada canadense, sem o conhecimento dos iranianos que
mantiveram cerca de 60 reféns na embaixada americana invadida.
A Central de Inteligência Americana – CIA elaborou e realizou um plano de resgate dos
seis americanos simulando uma produção canadense de um filme de ficção científica
que seria chamado Argo e rodado no Irã, um campo de pouso de naves extraterrestres
do filme.
Para tal, a CIA montou uma produtora, elaborou roteiro, script etc. Simulou uma visita
de locação das cenas para filmagens, obteve autorização dos iranianos e um dos seus
agentes fazendo-se de membro da equipe de produção, foi ao Irã levando falsos
documentos para viabilizar a fuga dos abrigados na embaixada canadense como se
estes fossem os demais membros da equipe de filmagem.
A fuga foi um sucesso. Os canadenses assumiram a responsabilidade pelo ato e
omitiram o papel da CIA para não prejudicar a vida dos reféns mantidos na embaixada
americana e que permaneceram lá por mais de um ano. Anos mais tarde, a história
real veio a público revelando o papel da CIA, dos resgatados etc.
Este é o roteiro do filme – Argo - ganhador do prêmio Oscar 2013. Um grupo
aprisionado em algum lugar hostil aos EUA, em circunstâncias que tornam quase
impossível a sua libertação, é resgatado por um mocinho ou uma equipe de heróis a
partir de uma ação corajosa e um plano ousado de fuga. Quantas vezes já se produziu
um filme assim? Para mim é um filmeco, com um roteiro batido e rebatido. Não
comento os demais aspectos que caracterizam as obras de cinema porque estes eu
não saberia julgar. Não entendo da arte, nem valorizo. Os filmes me ganham pelo
roteiro e, declaro, não sou muito exigente. Gosto de filmes de aventuras, sem
pretensões, e Argo é filminho tipo Rambo, sem a tradicional violência explícita do
personagem baixinho e machão de uma série que já deve estar no Rambo XXXVII.
Mas, essa preliminar é apenas para abordar ou manifestar o meu assombro com o que
chamo de “cinema americano” sem maior rigor na definição. Refiro-me ao produto
divulgado internacionalmente, produzido em estúdios possivelmente hollywoodianos
e que mantém a indústria multimilionária do cinema.
O meu espanto e, até, admiração é a capacidade do cinema americano produzir
aventuras, proezas e heróis também americanos, a partir de situações onde a participação Estados Unidos foi em realidade a mais escabrosa e indecente. É muita
cara de pau!
Não estou falando de um falseamento da realidade ou mistificação de fatos. Não
tenho a expectativa que uma obra comercial americana se transforme em um
instrumento de resgate histórico ou um documentário que contradiga ou conteste as
referências políticas daquela sociedade, embora isso possa ocorrer em circunstâncias
especiais. Também não me surpreendo com a existência de filmes que enalteçam a
CIA, outros aparelhos ou instituições que caracterizem a sociedade americana. Refiro-me a um processo ou mecanismo que se transformou em uma habilidade, quase uma
excelência. A capacitação do cinema americano em apresentar roteiros com um
descaramento e desconsideração crítica que parece ultrapassar a ideologia e que nem
mesmo se preocupa em ocultar os fatos.
O próprio filme relata, embora este não seja o foco, o papel dos EUA nos
acontecimento do Irã, no golpe que levou o Xá ao poder, e na sustentação e apoio à
sua ditadura torturadora e corrupta. O filme não omite o empenho americano em
salvar a pele do Xá quando este foi derrubado. Fala sobre a fortuna em ouro levada
pelo Xá quando este fugiu do Irã. O filme fala sobre a população com história de
familiares perseguidos, torturados e mortos pelo aparelho de estado iraniano apoiado
pelos americanos. Fala sobre o motivo da revolta, invasão da embaixada e sobre
captura de reféns americanos com o propósito de forçar os EUA a extraditarem o Xá
para ser julgado. Enfim, tudo isto está lá, no filme.
Porém, ainda assim, sinto-me parvo, imbecil, ao ver que os caras tem o descaramento
de contar a história sob uma ótica e com símbolos que invertem completamente os
papéis. Barbas opulentas, vozes exaltadas, grosseria no trato com as pessoas, sugerem
um povo iraniano de insanos e radicais fanáticos contrastados com americanos dóceis,
gentis e, por uma empatia induzida pelo filme, inocentes.
Os agentes da CIA, por sua vez, são personagens comprometidos em salvar o modo
americano de vida ao mesmo tempo em que “humanamente” tratam os seus
problemas pessoais e familiares. O filme tem até a tradicional cena de euforia do
pessoal que participa nos bastidores da missão, dando suporte e na monitoração dos
acontecimentos. Mostra uma retaguarda tensa e ansiosa com o desfecho que, quando
ocorre, provoca lágrimas, abraços efusivos, cumprimentos e aqueles olhares cúmplices
e comprometidos entre os que estão em pontos distantes dentro do mesmo ambiente.
Caralho! Acho que literalmente todo o mundo já assistiu filmes com estas cenas.
O que chama a minha atenção, que me apalerma, não é o fato de serem peças
medíocres ou de valorização de uma ação política com da qual discordo. Fico perplexo
com o cinismo desavergonhado e com o investimento num descaramento cujos
resultados positivos para os objetivos propostos não se pode negar.Felizmente não precisei aturar o cheiro insuportável de pipoca nem a visão daquelas
pessoas com caras retardada deslocando-se na sala de cinema e tropeçando ao olhar
para cima tentando identificar os acompanhantes, carregando os enormes baldes de
pipoca e copos de coca – cola cujos restos e respingos garantirão a frequência e
aumento da quantidade das baratas que habitam as salas de projeções (as notícias
informam que a sobrevivência dos bichinhos já está assegurada pela natureza até
mesmo no caso de explosões nucleares).
Assisti ao filme no ambiente higiênico e confortável da minha casa, numa sessão de
TeleCine, e confesso sem constrangimentos: em vários momentos me vi torcendo
pelos mocinhos da CIA, contra os bandidos da gangue do Aiatolá. Mas, não sinto culpa.
Isto já aconteceu em filmes sobre o resgate de reféns na A. Latina, no Vietnã e até mais
recentes, no Iraque e Afeganistão. No filme não tem problema. Desejo que eles se
fodam na realidade.
Rio, 05/03/2013
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
Aproveitando ainda os eflúvios do réveillon, quando sempre testemunhamos desejos, promessas, decisões, agradecimentos e pedidos ao sobrecarregado deus pai para o ano que se inaugura, faço o registro sonoro de duas maravilhas:
Led Zeppelin, em homenagem no prestigiado Kennedy Center, nos EUA (imagino que até o Tinhorão se curvaria com reverência ao se deparar com isto).
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=mf2O3OAQjng
E Paulinho da Viola, dos meus intérpretes favoritíssimos, cantando Novos Rumos (de Rochinha e Orlando Porto).
http://youtu.be/--ZtFVriASc
No mais, alguns versos visitando esse conceito que tanto nos oprime – a felicidade – como possível mote para uma próxima nota.
Por falar nisso. um feliz 2013 para todos!
Felicidade (Vera Lúcia de Oliveira)
como se essencial fosse sentar
um homem toma conta do quintal
fazendo cesta
cruzando fios
um gato preto lambe a solidão
o homem vê a solidão sendo lambida
e trança a felicidade
nos dedos ágeis
Biscuit (Paulo Henriques Britto)
Felicidade frágil,
que se equilibra mal
e mal (ainda que ágil)
no contrafactual
e no mais-que-imperfeito
do que ganha sentido
quando não tem mais jeito
e o prazo está vencido.
Então todo obstáculo
vira finalidade:
é o fim do espetáculo,
frágil felicidade.
Homem Feliz (Abel Silva)
Dizem que no Brasil
há um homem feliz...
(Maiakovski)
Nesta tarde, no Brasil
um homem se sente feliz!
não eufórico nem agitado
(na verdade nada de extraordinário aconteceu)
e ele examina o céu
de azul pintado. E este homem sou eu.
Na minha varanda, sob o Corcovado
há um pé de manacá, de pitanga e unha-de-gato
e até uma borboleta vira-folhas
comparece com sua soluçante e bem-vinda colaboração.
Não sei bem por que me sinto assim como aquele homem
brasileiro de Maiakovski
e é tão raro em letra de forma alguém se confessasr feliz
que eu deveria talvez fazer um exame de consciência...
Mas é que a vida está agora, digamos,
VIVA! Só. Sem alarde. Sem maiores transcendências.
Vivo eu, a borboleta, as plantas e a tarde...
Ocorre às vezes este viver pousado
na haste do tempo: ser,
feito um cão desprevenido ou um tigre saciado
só o faro, talvez, inda ligado
ao ritmo geral das coisas: a vida distraída.
Sei que isto é uma fresta
nas surpresas do vento
e enquanto olho o céu sozinho e lento
milhares se acotovelam nos porões
e afogados recebem
sob a neblina
a última notícia da luz.
Mas não quero pensar neles, não quero pensar,
só me sentir assim como me sinto: passando...
E a brisa
o tempo e a vida
me levando.
Felicidade (Antonio Cicero)
Felicidade é esse acaso
Que te fez o que és.
Nada queres dizer.
Nada deves a trabalho
Ou a dever.
Perverso
Brincas.
Criatura de um só dia
Absoluto
És festa
Serás luto.
És festa sonho carne frêmito.
Não mereces este prazer
Nem eu mereço teu amor:
Tudo entre nós é gratuito
E muito
E parte.
Cardumes de sol ao mar
Quase sem arte
Quero-te feliz.
O que é a felicidade?
lápide de tumba
num cemitério na margem da língua.
(Adonis)
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