sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Lila Maia





MELANCOLIA   (Lila Maia)


Levantar,
preparar o café, 
abrir a página qualquer de um livro de poesia.

Sentar diante da folha em branco,
como se a dor tivesse uma certa magia:
é que desespero tem forma, casa, comida.

Não me asfixio.
Deixo ressoar a água de mais um dia
dentro dessa coragem habitual.



OUTRA LEITURA  (Lila Maia)


Aceitei o silêncio humilhado de certas falas,
a mania de varrer o lixo para debaixo do tapete,
as lágrimas fortes como as do chuveiro.
Às vezes ama-se mal.
E o poema não consegue ter
a elegância, a altivez de uma garça.
É só um rato.



UMA VIGÍLIA  (Lila Maia)


Quarenta anos depois
o silêncio da chaleira que ferve.
Na infância, sempre acendi uma vela na outra.
As surras que levei não se enraizaram.
Cada dia soletrei um tempo do verbo partir.
Vivi com a indiferença e a saudade presas ao calendário.

Quarenta anos depois
não sei me despedir da saudade:
continuo ouvindo o arrastar daquele chinelo
número trinta e três pela casa.



MÚSICA  (Lila Maia)


Faço a letra, quando devagar pisas o tapete
e percebo que estou à beira de um violoncelo.
A vida sai tocando próxima ao meu pescoço
acordes tão íntimos que soletro ais.
Somos iguais em cheiros, excessos.

Faço a letra,
porque a noite, a véspera, o dia seguinte
é saber que a música não se aprende de repente.
É necessário repetir sol quase à exaustão.



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