domingo, 31 de julho de 2011

Miniconto de Francisco Pippio + pincelada de Manoel de Barros

Precisão  ( de Francisco Pippio, escritor e sociólogo sergipano)


  Tardezinha. O sol alaranjado, estacado no caixilho oco do quadrado da janela, tocaiava dona Laura, que se tangia desacorçoada, de um lado pro outro do único vão do barraco.

  Queixava-se da demora do filho menor, vista espichada no prumo da lixeira. Receava  que só chegasse junto com o breu da noite.

  Para bem dizer, ela nunca aprovou a lida do rebento, catando de-comer pra ela e os irmãos no lixo, apesar da precisão.

  Quando, enfim, ele riscou na moldura da porta do barraco, Laura escancarou a boca num sorriso solto, sem nem se importar com a desculpa que já vinha escapulindo das mãos abanando do menino:

  – Não deu pra trazer nada hoje. Um urubu chegou primeiro!





de Manoel de Barros:


 O menino de ontem me plange.


Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.


Tem mais presença em mim o que me falta.


Sou muito preparado de conflitos.


As palavras me escondem sem cuidado.


Aonde eu não estou as palavras me acham.


Não preciso do fim para chegar.


Do lugar onde estou já fui embora.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Ana Martins Marques

Como é bom abrir jornais, livros, publicações diversas que me passam pelas mãos e ser brindada com surpresas,  poemas de nomes desconhecidos para mim, mas que me trazem o mesmo arrebatamento, a mesma alegria, a mesma sensação de universo expandido que autores de referência me provocam.


Ana Martins Marques, poeta mineira, foi um desses nomes que me atiçaram e confortaram o espírito neste primeiro semestre.


Aí vão dois de seus poemas:



O Relógio


De que nos serviria
um relógio?

se lavamos as roupas brancas:
é dia

as roupas escuras:
é noite

se partes com a faca uma laranja
em duas:
dia

se abres com o dedo um figo
maduro:
noite

se derramamos água:
dia

se entornamos vinho:
noite

quando ouvimos o alarme da torradeira
ou a chaleira como um pequeno animal
que tentasse cantar:
dia

quando abrimos certos livros lentos
e os mantemos acesos
à custa de álcool, cigarros, silêncio:
noite

se adoçamos o chá:
dia

se não o adoçamos:
noite

se varremos a casa ou a enceramos:
dia

se nela passamos panos úmidos:
noite

se temos enxaquecas, eczemas, alergias:
dia

se temos febres, cólicas, inflamações:
noite

aspirinas, raio-x, exame de urina:
dia

ataduras, compressas, unguentos:
noite

se esquento em banho-maria o mel que cristalizou
ou uso limões para limpar os vidros:

se depois de comer maçãs
guardo por capricho o papel roxo escuro:
noite

se bato claras em neve:
dia

se cozinho beterrabas grandes:
noite

se escrevemos a lápis em papel pautado:
dia

se dobramos as folhas ou as amassamos:
noite

(extensões e cimos:
dia

camadas e dobras:
noite)

se esqueces no forno um bolo
amarelo:
dia

se deixas a água fervendo
sozinha:
noite

se te cortas com papel
ou feres o pé com vidro:
dia

se ao comer com pressa queimas
o céu da boca:
noite

se pela janela o mar está quieto
lerdo e engordurado
como uma poça de óleo:
dia

se está raivoso
espumando
como um cachorro hidrófobo:
noite

se um pinguim chega a Ipanema
e deitando-se na areia quente sente ferver
seu coração gelado:
dia

se uma baleia encalha na maré baixa
e morre pesada, escura,
como numa ópera, cantando:
noite

se desabotoas lentamente
tua camisa branca:
dia

se nos despimos com ânsia
criando em torno de nós um ardente círculo de panos:
noite

se um besouro verde brilhante bate repetidamente
contra o vidro:
dia

se uma abelha ronda a sala
desorientada pelo sexo:
noite

de que nos serviria
um relógio?





Ícaro


Somos os dois
incompatíveis
como a cera
e o sol

e no entanto
parecemo-nos
como se parecem
o açúcar e o sal

devemos
porém
deixar
de insistir

pois se até
Ícaro
caiu
em si.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Tempos de Paz

Gente, acabo de ver um filme que é uma obra-prima! (embora os cri-críticos possam insistir na falta de tecnoesfuziantes efeitos especiais, planos ou tomadas de cena que façam ressuscitar Cidadão Kane).   
Tempos de Paz (2009), de Daniel Filho, é indescritível em sua delicadeza no trato de questões humanas, das mais incontroversamente violentas às mais metafísicas.
Uma homenagem ao teatro, com grande reverência e respeito ao ser artista!
Um convite à reflexão profunda sobre a linguagem e suas variantes de sutilezas múltiplas.
Um belo tratado filosófico, dentro de um contexto histórico traumático, sobre a violência, a culpa, a submissão, o medo, a verdade...
Tony Ramos e Dan Stulbach dão um banho de atuação.
São impressionantes o alto nível, o domínio técnico e a sensibilidade desses atores!


A maravilhosa trilha sonora é de Egberto Gismonti.




José Eduardo Agualusa, em Estação das Chuvas, ed. Língua Geral, 2010:

... encontraram um bosque feito inteiramente de uma mesma cinza e dentro dele algumas cubatas também de cinza, e dentro das cubatas, esteiras e moringues e utensílios diversos, tudo de cinza. Presos aos raminhos das árvores havia centena de pequenos pássaros, igualmente de cinza morta, com as suas alegres canções de chuva cristalizadas na ponta dos bicos. As bombas dos portugueses tinham travado o curso do tempo sobre o bosque, fechando aquele instante aflito numa redoma de cinzas. Passado um instante que a todos pareceu interminável, alguém levantou o braço e tocou com a ponta dos dedos a frágil estrutura de cinzas. Então todo o bosque se começou a desmoronar, com um demorado rumor de chuva mansa, e, com ele, os pássaros e as cubatas e a utensilagem doméstica, e em breve nada havia em redor a não ser uma larga planície de cinza idêntica.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Um lindo poema de Tanussi Cardoso

sobre o nome das coisas  (para Luiz Ruffato)

I
porque todos os mistérios são santos,
não nomearemos o nome das
coisas.
ainda que os desertos floresçam
e o caos das chuvas transborde,
deles, o sangue não diremos.


II
no início era a Vida.
depois aprenderam os cães a ladrar
e o homem a chamar o nome das coisas
e os dedos a cruzar em nome de Deus.


III
ainda que encruado o Filho
ou mesmo que a serpente
renegue por 3 vezes
a árvore do desejo,
o nome não será.
ainda que lambam as chagas.
ainda que as lágrimas escorram,
toda a dor será cuspida
e o sol cumprido.


IV
quando caminhávamos na areia,
os nomes não havia.
havia o mar sem nome.
o céu, as frutas,
as pegadas dos pássaros
e o sonho havia sem nome.
tudo era simples.
simples os homens
sem nomes.


V
 eram noites
e dias indefiníveis,
as coisas.
os olhos aprendiam o verde
e pescavam sem nomear.
os olhos ouviam tudo.
maravilhavam-se de
maravilhas!


VI
quem nos carrega nos ombros?
quem nossa língua nos bebe?
a quem dizer, quero?
a quem dizer, preciso?
a quem dizer, inocentes?


VII
as coisas que não diremos
habitam as cidades
e as sombras iluminam
escuras cavernas.
os dentes, os cabelos
arranca-nos, o tigre.


VIII
vivemos dentro de nós.
estrangeiros.
percorremos estradas,
ruas, cidades. nus e
estrangeiros.
cada sorriso, cada
abraço, estrangeiros.
nossos mares e navios,
estrangeiros.


IX
o Tempo se cola ao corpo.
o rosto envelhece.
unhas expurgam.
enruga a pele.
resta esperar.


X
quantas faces temos?
qual delas se chama
amor?
quem em nós se diz a
morte?
qual acende a vela do
templo?


XI
eis que
os nomes não ditos se esquivam
e o Verbo
que era barro
se faz
vento.
                           (Tanussi Cardoso)