quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A Chuva nos Ruídos

Quatro poemas de "A Chuva nos Ruídos", antologia poética de Vera Lúcia de Oliveira:


O VENTO NÃO CONHECE

o vento não conhece o bojo
dos frutos úberes
que estrala contra o muro
o vento não conhece o coração
dos tijolos que escorraça
o vento não conhece
a sede do grão
que trabalha
sua subversão
no osso



OS RETRATOS

os retratos na parede pingam
gestos rugosos
terrores
surdos
e ressequidos

pingam uma dor
que não se decifra

pingam suas sílabas lesas
seus verbos descarnados
suas veias sutilmente
maciças



PALAFITAS

palafitas
para fixar a dor no charco
molhar a miséria
roer a guerra roendo
a luta

ver se os vermes em conclave
abrem duma vez
do fio da vida as mãos equilibristas
ver se eles roem até os buracos
até os cacos de vidro do que
alimenta a fome



COISAS

não as coisas sobre a mesa
depois do jantar
depois da festa
o canto empastado de vozes no escuro

não as coisas crespas
desventradas
sem a forma redonda das mãos
que afugentam ângulos
agudos

não as coisas como pedaços de prego
           estiletes
habitações vazias de abstrato
agressivas ao tato

que sangram
       na manhã que a luz
            aos poucos
                 desvenda
entre restos de arroz
                carne
em guardanapos
paredes

não as coisas dolorosas
em farelos
varadas como bichos
olhos e boca ao entardecer
ceifados para a festa
antes da festa

sábado, 26 de novembro de 2011

Fiandeiras de Minas

Eis uma de minhas músicas (Fiandeiras de Minas) em parceria com Cacau Leal, gravada no estúdio do Theo de Oliveira, com violões tocados por mim e pelo Theo.



http://dl.dropbox.com/u/19274987/fiandeiras2%40.mp3



Vem de Minas
Fio a fio bem tecida
À sombra dos buritis
Uma rede boa de dormir

Vem de Minas
Ponto a ponto irmanadas
Em ramas de algodão
As carícias dessas mãos

Mãos tecelãs divinas
Filhas do Sertão (de Minas)
Mães artesãs aguerridas
Alma, coração
Vem de Minas

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sob uma estrela pequenina

de Wislawa Szymborska:


Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe as gentes nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes devo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Há muito que percebo à minha volta certo cultivar de crença ou entendimento que associa nitidamente a rapidez de gestos, raciocínios e respostas a inteligências privilegiadas.

Sem querer fazer disso uma tese, nem tampouco defender minha lerdeza ou justificar minha não-inserção nas top lists cerebrais da humanidade, ouso argumentar contra tal paradigma que faz de pessoas como eu, teimosas tartarugas sobreviventes por razões que nem Darwin teve tempo de conceber, seres sem direito aos holofotes e aplausos consagradores dos ditos bem dotados.

Rapidez pode ser recomendável e eficiente em inúmeras situações, que vão desde o concluir de testes e provinhas em escolas e cursos de nosso desnorteado ensino até o twittar e digitar como se galopando desembestadamente pela vida afora; desde o apressar de passo nas ruas e praças ameaçadoras de nossas cidades até o engolir indistinto das frequentes refeições de horas estranguladas;

mas não para perceber timbres, cores e silêncios no descontínuo regular de uma canção;

não para ler ou dizer um poema que nos toca;

não para retribuir um sorriso;

não para ver um filme de Kurosawa, Zhang Yimou ou Resnais;

não para apreender um Guimarães Rosa em sua grandeza;

não para abrir os olhos e frequências para novos tempos e boas gentes;

não para calcular o pulso certo e, como se ofertando flores, oferecer auxílios;

não para dar bom dia ao sol ou para dizer eu te amo ou ainda Obrigada, Vida!




Amar  (Carlos Drummond de Andrade)

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
O que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão vazio,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
Amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.