terça-feira, 28 de junho de 2011

Gonçalo M. Tavares II

Contra as precipitações

  Estás vivo e, no essencial, há uma falha – não se ter ainda morrido não pode ser, afinal, nunca, a última das satisfações.



Diferenças

  Se enquanto te deixas acariciar pela ociosidade podes, de longe, ser confundido com um cão, quando te levantares para agir, aí as diferenças terão de ser evidentes, sob o perigo de deixares de ser considerado humano.



A ameaça

  O projeto de enterrar, como um corpo, até ao topo, uma casa é mais violento do que a mera destruição levada a cabo por uma engenharia de explosivos. (Sob um pano ou sob a terra), bem mais ameaçador do que as ruínas fica aquilo que, mantendo a sua energia intacta, se tenta ocultar. (Quando destróis, diminuis a força do que antes era uma unidade, quando tapas, aumentas.)



Como viver?

  Guiada, em simultâneo, por um animal lento e um rápido, a carroça, desequilibrada, acabará por cair afinal para um dos lados – e o criado, que agarrava o chicote, culpará do acidente o animal mais lento, enquanto a nobre dama, lá atrás, na carruagem, não hesitará em culpar o mais rápido.



Debaixo da terra

  Estamos no âmbito do pormenor e é nele que o verme distribui o seu apetite. Pelo tempo: com a paciência ou, se quiserem, com a lentidão. E pelo espaço: com o rigor minucioso de nenhuma parte deixar por explorar.
  Como os deuses, em certos mitos de origem, os vermes conhecem comendo; devoram como aprendizagem.



O perigo

  Nada é tão perigoso como teres cumprido todos os teus deveres do dia e ainda ser manhã, teres cumprido todos os teus deveres na vida e ainda não estares morto.



Uma razão para o fazeres

  Se não acorreres ao local, nunca poderás saber se quem grita por socorro o quer receber ou dar.



Viver

  Atacado ao longo do caminho por salteadores que o roubam e maltratam, o homem, sobrevivendo, regressa por fim a casa para preparar a próxima viagem.



Estar vivo

  Como os dois pés não apenas pousados no Mistério, mas nele como que afundados – de tal forma que já duvidas se sob uma película opaca e incompreensível eles ainda existem e te pertencem –, eis que avanças o tronco tentando que pelo menos as mãos estejam fora do alcance dessa força de que não conheces origem nem limites.
  Como aquele que diz adeus quando se despede de alguém que ama e não sabe se voltará a ver, moves então a tua mão direita, que aparece, como da manga de uma camisa comum, no lado de fora do Mistério onde caíste sem seres convidado e sem desejares. Mas de fato a tua mão não se despede de ninguém – talvez peça ajuda.

domingo, 26 de junho de 2011

Coisas boas demais de se ouvir!

Três maravilhas, bem distintas, para serem escutadas, curtidas, apreciadas, degustadas. Delícias de CDs:

1) Thaís Gulin (ôÔÔôôÔôÔ) – praticamente, só inéditos.
2) Áurea Martins (depontacabeça) – neste disco Áurea canta nosso genial autor Hermínio Bello de Carvalho.
3) Eladio Pérez-González (canciones populares españolas, de Manuel de Falla; Nicolas Pérez-González; H. Villa-Lobos; Joaquin  Rodrigo) – infelizmente, este CD não está sendo comercializado. Com muita sorte e paciência, poderão ouvi-lo através das benesses da internet. Pretendo colocá-lo aqui em breve.



PAREM DE JOGAR CADÁVERES NA MINHA PORTA  (Affonso Romano de Sant'Anna)

Parem de jogar cadáveres na minha porta.
Tenho que sair
– respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeligs.
Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos por onde passo.
Estou em Essauíra, na costa do Marrocos
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.
Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.
Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi
frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.
Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
– na Cidade Proibida na China.
Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
na minha cama
dificultando
que alcance o corpo da mulher que amo.
Afastem de mim
o meu
o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
como um Sísifo moderno
desesperado
julgar
– que o tinha que carregar.



3 X NIETZSCHE  (Affonso Romano de Sant'Anna)

Deus
não precisa da autorização de Nietzsche
para existir
nem de fanáticos que declaram guerra
aos infiéis.
Deus
– ou que nome se lhe dê –
não necessita de preces, lágrimas, promessas.
Deus sequer lê poemas.
Na melhor das hipóteses
                     – os escreve
mas não assina
nem os divulga.
Na verdade, não necessita sequer
de nossa leitura.
Ele está em todas as partes
e acha vã nossa procura.
E quando lê livros de filosofia, ri,
soberano
         – de nossa loucura.

Quando Deus tomou conhecimento
das teorias de Nietzsche sobre a "morte de Deus"
estava, como sempre, ocupado
em fazer e refazer galáxias
pelo elementar prazer divino
de recriar-se eternamente.
Desconsolado, então,
Nietzsche se matou.
Pesaroso, Deusfoi ao seu enterro
como não podia deixar de ser.

Ele vai ao Grande Mercado Nietzsche
adquirir artefatos para seu discurso.
Há ferramentas para multiuso
abrem e fecham qualquer porta
e conceito.
Na entrada
deve-se pegar um cestinho
para colher o que se pode das prateleiras.
Se não se acha o que se procura
basta ir um quarteirão mais adiante
em duas lojas tudo se encontrará
– uma se chama Foucault
             – a outra Derrida.

domingo, 19 de junho de 2011

Gonçalo M. Tavares I

Deixo aqui o registro de algumas das belas páginas "poético-aforísticas" do Breves Notas Sobre o Medo, de Gonçalo M. Tavares.




Problemas, respostas


  A matéria-prima, falemos assim, da resposta parece ser de menor valor cambial que a da pergunta. Isto se as colocarmos – pergunta e resposta – no mercado dos homens em cuja existência a curiosidade tomou o seu centro. No entanto, como bem sabemos, estes homens são uma minoria. Em todos os outros mercados (e há tantos), prevalecem homens que decidem sobre a vida e a morte de outros, homens cujo destino lhes mostrou já um lado trágico, inultrapassável; e nestes outros homens, nestes outros mercados, cada resposta é o único valor a ser transmitido. Aos seus filhos, por herança, esses homens deixarão decisões e modos de viver; enquanto de oferta às pessoas que odeiam deixarão aquilo que não conseguiram resolver em vida – tal como, para assustar, os criminosos deixam, à porta do inimigo, a cabeça degolada de um cavalo.




Os imortais


  Como um poeta que se esforçasse por ser elogiado por outra coisa – que não a fragilidade que exige de imediato uma coragem – , certos homens insistem em não esperar a morte e devido a essa distração são sempre apanhados – como a mulher adúltera pelo marido – descompostos, de corpo desnudado, exibindo por falha uma luz imoral que sempre juraram não ter.
  E porque observados, e incapazes – eis o pior – de acionar o mais leve movimento de pudor, os que fingiam imortalidades caem por completo sem um único preparativo terminado. Morrem no momento em que traem, quando os velhos manuscritos aconselham a acabar-se a vida na posição do sacrificado, na figura daquele que outros enganaram e que outros venceram.




Falar, ouvir


  Tratas as palavras que dizes como se fossem passageiros de primeira classe e tu um empregado servil e, face às palavras dos outros, comportas-te como se elas fossem o empregado servil e tu o passageiro que viaja em primeira classe.




Moral


Eis então – porque nada em ti caiu de podre – que morres contente como se tivesses nascido já dentro de um jogo e todas as tuas ações fossem no sentido de, com delicadeza, perceber primeiro as regras e só depois decidir em que equipe se combate e quais os objetivos e movimentos possíveis. Porém, há jogos complexos cujas regras parecem ter sido feitas para que nenhum mortal as consiga perceber.
 Trata-se de jogar, insiste contigo o mundo. Mas com que regras?, insistes tu com o mundo. E a resposta acaba sempre por chegar no momento ou no espaço errados. Ou então numa Língua da qual conheces dois ou três vocábulos, insuficientes sequer para, à hora da refeição, num restaurante, escolheres o prato certo.




Acalma-te!


  Mesmo que desças até o ponto em que deixas de observar a claridade da superfície, não te inquietes demasiado, pois a superfície do mundo, também ela, em poucas horas (a noite aproxima-se) ficará escura.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Rosane Duá

No corre-corre desenfreado que caracteriza os meus dias (e os vossos?) nos tempos atuais, às vezes, cometo atrasos imperdoáveis tanto em leituras quanto no escutar íntimo e particular de gravações, que frequentemente se acumulam em estantes e arquivos, à espera do abençoado momento do desfrute.

É com o atraso de pelo menos um ano que desfruto o CD Todos Nós, de Rosane Duá.

Cercada de músicos e compositores de talento incontestável, veteranos de peso da nossa história musical, como Jota Maranhão, Juca Filho, Jorge Vercilo e Mingo, Rosane Duá conta com Theo Santos como produtor musical, instrumentista e arranjador. Só este detalhe já imprime dose considerável de nobreza ao trabalho.


Theo Santos é um dos músicos mais geniais que conheci. Além de ser uma pessoa culta, generosa e delicada no trato, possui a capacidade rara de ouvir com atenção e ternura qualquer frequência sonora audível, da mais simples tagarelice ao mais nobre resmungo, sussurro ou latido, processando-a em criações artísticas surpreendentes.


Theo Santos é uma figura ímpar no meio musical, digo, no Brasil, digo, no mundo, dessas que marcam para sempre qualquer alminha que tenha o privilégio de cruzar o seu caminho.


Há pessoas que parecem a nós, pobres mortais, pertencentes ao rol de privilegiados que têm passe para os inalcançáveis vales do Éden!


A bonita Rosane Duá, arquiteta, artista plástica de primeira, especialista na sedutora arte dos mosaicos, revela-se agora a mim como uma incrível cantora (e compositora): voz impecável, timbre-carícia, maestria no apoio, sensibilidade no dizer e na emoção do cantar.


Tiro meu chapéu pra você, Rosane Duá!
E obrigada pela chance de ouvi-la, mesmo que tardiamente.