terça-feira, 20 de novembro de 2012

Cora Coralina, Itamar Silva e Grupo Eco do Santa Marta



Todos à minha volta sabem do meu grande envolvimento com o Grupo Eco do Santa Marta e da enorme admiração que tenho por Itamar Silva, fundador e presidente do grupo, um homem de garra e fibra, de integridade, inteligência e humanismo incontestáveis.

O Diablog tem a satisfação de acolher e registrar duas gotas preciosas vinculadas ao trabalho e à história do Grupo Eco e da Favela de Santa Marta: a primeira é Todas as Vidas, poema de Cora Coralina que nos encanta particularmente na interpretação magnífica da Geralda, integrante do grupo cênico-musical Eco do Santa Marta, que dirijo há dez anos; a outra é um simples relato de um acontecimento corriqueiro num dia comum da vida naquela favela – um instantâneo absolutamente distante da rotina de muitos moradores "do asfalto" daquele bairro incrustado no coração da zona sul do Rio de Janeiro.




TODAS AS VIDAS

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
na minha vida –
a vida mera das obscuras.

(Cora Coralina)





          Deu macaco na manhã de domingo de Santa Marta  


O domingo no Santa Marta seguia sua rotina. Moradores acordando um pouco mais tarde; uns porque é domingo e aproveitam para tentar descansar o corpo da semana pesada de trabalho. Outros dormem um pouco mais, por só terem conseguido pegar no sono às 6 horas da manhã, quando acabaram os bailes e os eventos da comunidade que bomba. E outros ainda estão “zumbizando” pelos caminhos. A madrugada foi tão boa que a vontade é de não dormir e prolongar o prazer da festa.
A rotina é quebrada por um estrondo que ecoa por quase todo o Morro. Imediatamente o som alto de um animado forró que já saía de uma das casas emudece. Quem estava na padaria para comprar o pão apressou-se em fazer o seu pedido, pois sabia que a próxima fornada poderia demorar. O estrondo veio do estouro de um transformador da Light e deixou metade do Morro sem energia elétrica.
Logo a notícia se espalhou pelos caminhos mais ou menos silenciosos da favela: “Foi o macaco! Ele está todo queimado!” “Ele morreu?” “Ainda não! Tá estrebuchando, com metade do corpo todo queimado!”
Duas horas depois a Light estava no local consertando o transformador desarmado pelo macaco. Em seguida, o Morro volta à sua rotina. O vizinho coloca outra vez o mesmo cd de forró. Um pouco mais distante, um saudosista dispara músicas da década de 1970. E vários outros sons misturados e indecifráveis tomam conta desta quase hora do almoço. O dia está chuvoso e faz frio no Santa Marta. A padaria ligou o forno elétrico e prepara mais uma das várias fornadas do dia. No entanto, uma pergunta que não quer calar! E o macaco? Morreu?
Seu corpo está encolhido numa parte do caminho, próximo ao poste que sustenta o transformador danificado.
Um garotinho se aproxima, puxando o irmão menor pela mão: “Vem, vem ver o macaco!” E logo outros curiosos se aproximam. Um misto de interesse, pena e medo reflete o sentimento daquela pequena multidão que quer comprovar a existência de um culpado pelas horas sem energia.
Uma dúvida toma conta da favela: de quem é a responsabilidade pela retirada do corpo do macaco daquele local? Alguém sugere ligar para o 199, 193 (?), mas a contra-argumentação é imediatamente ouvida – eles demoram e só atendem se for gente!
“Chama o bombeiro!”, sugere outro, rindo: “Ih, bombeiro só retira gatinho de telhado que ameaça viúva indefesa.”
“O mais correto é chamar a sociedade protetora dos animais”, fala uma senhora com muita autoridade. Mas a afirmação é quebrada por um adolescente: “A sociedade só protege animais vivos.”
E agora, quem poderá nos ajudar? Eu, Chapolin Colorado!
E a alegria volta a reinar. Cada um vai para seu canto e o dia segue com seus barulhos habituais na favela de Santa Marta.
Obs.: Apesar da grande movimentação em torno do ocorrido, muitos moradores continuaram dormindo e, certamente, até duvidarão desta história! Em sua opinião, de quem é a responsabilidade pelo corpo do macaco?

(Respostas para o facebook do Grupo Eco. Os comentários serão publicados na próxima edição do Jornal.)


(Itamar Silva)







quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Madredeus, W. Szymborska e Raul Macedo


Coisa linda para se ver, ouvir e ler a toda hora e não só em vésperas de datas especiais!
Carícias.

Delicio-me sempre com Madredeus.
Vale a pena curtir o link:
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=hCUOQYruotI





A mulher de Lot            (Wislawa Szymborska)

Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.





In Memoriam       (Raul Macedo)


Sugiro que Wislawa

tenha fumado no hospital

e dito – daria tudo

por um  café, e alguém

com uma almofada apoiaria

sua cabeça,  e ela

 pensaria  em dizer

que não perdeu ainda a cabeça,

mas não  diria, não era

preciso, e ela ,sorrindo,

 sabia  desde  o começo,

o algodão do estofo da cama

o soro, os aparelhos,

 ao rés da música abrindo

lá fora alguns pássaros

na alva da janela,

olharia a relva sem olhar

para trás, para os civis

(apenas pra moça de xale

que alimentava as pombas)

sentava num banco, elegante,

esperava, esperava

e tomava seu café

como quem abraça um amigo.




.