quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A Chuva nos Ruídos

Quatro poemas de "A Chuva nos Ruídos", antologia poética de Vera Lúcia de Oliveira:


O VENTO NÃO CONHECE

o vento não conhece o bojo
dos frutos úberes
que estrala contra o muro
o vento não conhece o coração
dos tijolos que escorraça
o vento não conhece
a sede do grão
que trabalha
sua subversão
no osso



OS RETRATOS

os retratos na parede pingam
gestos rugosos
terrores
surdos
e ressequidos

pingam uma dor
que não se decifra

pingam suas sílabas lesas
seus verbos descarnados
suas veias sutilmente
maciças



PALAFITAS

palafitas
para fixar a dor no charco
molhar a miséria
roer a guerra roendo
a luta

ver se os vermes em conclave
abrem duma vez
do fio da vida as mãos equilibristas
ver se eles roem até os buracos
até os cacos de vidro do que
alimenta a fome



COISAS

não as coisas sobre a mesa
depois do jantar
depois da festa
o canto empastado de vozes no escuro

não as coisas crespas
desventradas
sem a forma redonda das mãos
que afugentam ângulos
agudos

não as coisas como pedaços de prego
           estiletes
habitações vazias de abstrato
agressivas ao tato

que sangram
       na manhã que a luz
            aos poucos
                 desvenda
entre restos de arroz
                carne
em guardanapos
paredes

não as coisas dolorosas
em farelos
varadas como bichos
olhos e boca ao entardecer
ceifados para a festa
antes da festa

sábado, 26 de novembro de 2011

Fiandeiras de Minas

Eis uma de minhas músicas (Fiandeiras de Minas) em parceria com Cacau Leal, gravada no estúdio do Theo de Oliveira, com violões tocados por mim e pelo Theo.



http://dl.dropbox.com/u/19274987/fiandeiras2%40.mp3



Vem de Minas
Fio a fio bem tecida
À sombra dos buritis
Uma rede boa de dormir

Vem de Minas
Ponto a ponto irmanadas
Em ramas de algodão
As carícias dessas mãos

Mãos tecelãs divinas
Filhas do Sertão (de Minas)
Mães artesãs aguerridas
Alma, coração
Vem de Minas

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sob uma estrela pequenina

de Wislawa Szymborska:


Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe as gentes nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes devo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Há muito que percebo à minha volta certo cultivar de crença ou entendimento que associa nitidamente a rapidez de gestos, raciocínios e respostas a inteligências privilegiadas.

Sem querer fazer disso uma tese, nem tampouco defender minha lerdeza ou justificar minha não-inserção nas top lists cerebrais da humanidade, ouso argumentar contra tal paradigma que faz de pessoas como eu, teimosas tartarugas sobreviventes por razões que nem Darwin teve tempo de conceber, seres sem direito aos holofotes e aplausos consagradores dos ditos bem dotados.

Rapidez pode ser recomendável e eficiente em inúmeras situações, que vão desde o concluir de testes e provinhas em escolas e cursos de nosso desnorteado ensino até o twittar e digitar como se galopando desembestadamente pela vida afora; desde o apressar de passo nas ruas e praças ameaçadoras de nossas cidades até o engolir indistinto das frequentes refeições de horas estranguladas;

mas não para perceber timbres, cores e silêncios no descontínuo regular de uma canção;

não para ler ou dizer um poema que nos toca;

não para retribuir um sorriso;

não para ver um filme de Kurosawa, Zhang Yimou ou Resnais;

não para apreender um Guimarães Rosa em sua grandeza;

não para abrir os olhos e frequências para novos tempos e boas gentes;

não para calcular o pulso certo e, como se ofertando flores, oferecer auxílios;

não para dar bom dia ao sol ou para dizer eu te amo ou ainda Obrigada, Vida!




Amar  (Carlos Drummond de Andrade)

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
O que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão vazio,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
Amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.











quinta-feira, 27 de outubro de 2011

América V

(continuação de América de Carlos Drummond de Andrade)


Esta solidão da América... Ermo e cidade grande se espreitando.
Vozes do tempo colonial irrompem nas modernas canções,
e o barranqueiro do Rio São Francisco
– esse homem silencioso, na última luz da tarde,
junto à cabeça majestosa do cavalo de proa imobilizado
contempla num pedaço de jornal a iara vulcânica da Broadway.
O sentimento da mata e da ilha
perdura em meus filhos que ainda não amanheceram de todo
e têm medo da noite, do espaço e da morte.
Solidão de milhões de corpos nas casas, nas minas, no ar.
Mas de cada peito nasce um vacilante, pálido amor,
procura desajeitada de mão, desejo de ajudar,
carta posta no correio, sono que custa a chegar
porque na cadeira elétrica um homem (que não conhecemos) morreu.

Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o pressentimento ou a ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco, percorrem teus caminhos, América.
Esses homens estão silenciosos mas sorriem de tanto sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

América IV

(continuação de América, de Carlos Drummond de Andrade)



Tantas cidades no mapa... Nenhuma, porém, tem mil anos.
E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas.
Como fazer uma cidade? Com que elementos tecê-la? Quantos fogos terá?
Nunca se sabe, as cidades crescem,
mergulham no campo, tornam a aparecer.
O ouro as forma e dissolve; restam navetas de ouro.
Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados
(que vão esmagar a última revolução);
o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro de valentes;
a pequena fábrica de chapéus; a professora que tinha sardas...
Esses pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão.
A criança espantada
não sabe juntá-los.

Contaram-me que também há desertos.
E plantas tristes, animais confusos, ainda não completamente determinados.
Certos homens vão de país em país procurando um metal raro ou distribuindo palavras.
Certas mulheres são tão desesperadamente formosas que é impossível não comer-lhes os retratos e não proclamá-las demônios.
Há vozes no rádio e no interior das árvores,
cabogramas, vitrolas e tiros.
Que barulho na noite,
que solidão!



Continua no próximo capítulo.
Aguardem.
V.V.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

América III

(continuação de América, de Carlos Drummond de Andrade)


Canta uma canção
de viola ou banjo,
dentes cerrados,
alma entreaberta,
descanta a memória
do tempo mais fundo
quando não havia
nem casa nem rês
e tudo era rio,
era cobra e onça,
não havia lanterna
e nem diamante,
não havia nada.
Só o primeiro cão,
em frente do homem
cheirando o futuro.
Os dois se reparam,
se julgam, se pesam,
e o carinho mudo
corta a solidão.
Canta uma canção
no ermo continente,
baixo, não te exaltes.
Olho ao pé do fogo
homens agachados
esperando comida.
Como a barba cresce,
como as mãos são duras,
negras de cansaço.
Canta a estela maia,
reza ao deus do milho,
mergulha no sonho
anterior às artes,
quando a forma hesita
em consubstanciar-se.
Canta os elementos
em busca de forma.
Entretanto a vida
elege semblante.
Olha: uma cidade.
Quem a viu nascer?
O sono dos homens
após tanto esforço
tem frio de morte.
Não vás acordá-los,
se é que estão dormindo.


Continua no próximo capítulo.
Aguardem.
Até lá.
V.V.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

América II

(continuação de América, de Carlos Drummond de Andrade):



Ah, por que tocar em cordilheiras e oceanos!
Sou tão pequeno (sou apenas um homem)
e verdadeiramente só conheço minha terra natal,
dois ou três bois, o caminho da roça,
alguns versos que li há tempos, alguns rostos que contemplei.
Nada conto do ar e da água, do mineral e da folha,
ignoro profundamente a natureza humana
e acho que não devia falar nessas coisas.

Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.
Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou.
Passa também uma escola – o mapa –, o mundo de todas cores.
Sei que há países roxos, ilhas brancas, promontórios azuis.
A terra é mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se
em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da infância.
América, muitas vezes viajei nas tuas tintas.
Sempre me perdia, não era fácil voltar.
O navio estava na sala.
Como rodava!

As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no mundo escuro.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios.
Seus passos urgentes ressoam na pedra,
ressoam em mim.
Pisado por todos, como sorrir, pedir que sejam felizes?
Sou apenas uma rua na cidadezinha de Minas,
humilde caminho da América.

Ainda bem que a noite baixou: é mais simples conversar à noite.
Muitas palavras já nem precisam ser ditas.
Há o indistinto mover de lábios no galpão, há sobretudo silêncio,
certo cheiro de erva, menos dureza nas coisas,
violas sobem até à lua, e elas cantam melhor do que eu.



Continua no próximo capítulo.
Aguardem.
Até lá.
V.V.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

América I

América  (Carlos Drummond de Andrade)


Sou apenas um homem.
Um homem pequenino à beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.
Vi que amanheceu porque os galos cantaram.
Como poderia compreender-te, América?
É muito difícil.

Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.
O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto, e não sabe contar!
A boca também não sabe.
Os olhos sabem – e calam-se.
Ai, América, só suspirando.
Suspiro brando, que pelos ares vai se exalando.

Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não acompanham.
Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples tempo
dispersaram esses velhos amigos em pequenos cemitérios do interior,
por trás de cordilheiras ou dentro do mar.
Eles me ajudariam, América, neste momento
de tímida conversa de amor.


Continua no próximo capítulo.
Aguardem.
Até lá.
V.V.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Poeminhas do Millôr

Eu sou da geração
Que mais se boquiabriu
E esbugalhou os olhos,
Imbecil,
À florescência
Da ciência.
Me maravilhei com a sulfa,
A vitamina,
O transistor, o laser
E a penicilina.
Antetelevisão
Bestei com a teleobjetiva
A quarta dimensão
O quilouóti posto na locomotiva
O relógio digital
O computador e a computação
A lente helicoidal
E a radiografia.
Babei com a halografia!
Embora pró
Sou também pré-jatopropulsão
O que me torna preprojatopró,
Termo que não ocorreria
À minha vó.
Tenho a vaga impressão
De que a ciência
Brochará sua invenção
Quando morrer o espanto
Da minha geração.



Cavalos, burros, asnos,
zebras, muares, potros;
Amai-vos uns aos outros.



Sócrates, Horácio, Prometeu,
Platão, Newton, Galileu
Fofocavam também
Feito você e eu?



A absoluta verdade
Só em caso
De última necessidade



Quando eu morrer
Vão lamentar minha ausência
Bagatela
Pra compensar o presente
Em que ninguém dá por ela.



Não, eu não tenho medo do fim,
                    Mas,
E se o mundo terminar antes de mim?



Vocês não sabem, eu sei
Como é duro ser
Mais realista do que o rei.



A coisa vem de longe
Do passado;
Caim nunca foi
Pronunciado.



Liderar não é nada duro;
As perguntas são todas no presente,
As respostas são todas no futuro.



Líderes, santos,
cientistas,
Está tudo na TV
Buscando todos,
nervosos,
A glória,
prêt-à-porter.



O verdadeiro chato,
Chato ímpar – sem par –,
É o que vive chateado
Sem ninguém o chatear.



Amar o próximo
É folgado
O difícil é se dar
Com o homem do lado.



Tem quem não saca:
A qualidade do leite
Não depende só da vaca.



Sessenta já, xará?
Vem cá;
Te querem muito aqui
Ou não te querem lá?

                            (Millôr Fernandes)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Lindo poema do meu querido amigo Cacau Leal



Costa do Sol   (Cacau Leal)

a poesia está onde estás agora
nas asas de uma gaivota do mar
a poesia está nos olhos
que arrastam dunas
búzios
moinhos
salinas ao pôr do sol

fonte cristalina lágrimas
água marinha
a poesia entrelaça
espaço e tempo
a poesia não fecha
abre o pensamento

há poesia na pele prateada dos peixes
no canto enfeitiçante das sereias
há poesia no barco pesqueiro
quando parte solitário
e retorna rodeado de aves
envoltas em cores iridescentes
gente
gente
gente
há poesia no abraço
no beijo
no vento que sopra
sonhos segredos
sinas

há poesia
no doce mistério
da vida

domingo, 11 de setembro de 2011

Farofeiros e Farofeiras

A terceira edição do Farofarra, evento de porte criado pela minha família, para reunir amigos de toda época e idade, num concurso original em que procura-se eleger a farofa dos deuses, aquela que deixa marcas, se não iguais, pelo menos semelhantes às das madeleines dos corredores obscuros de nossa memória, tão bem descritas no Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, finalmente aconteceu.

Não sei se Proust salivaria ao pousar o olhar sobre uma mistura farinácea, com ovos, gordura trans e glúten, recém-saída da cozinha discutivelmente salutar do restaurante da esquina, mas desconfio que ele não vacilaria em vir a pé de Nova Iguaçu até o Catete, num Sete de Setembro ameno de pré-verão, para degustar os vinte e cinco espécimes inscritos no aloprado e esdrúxulo concurso, mas de indiscutível importância, e votar nas modalidades sabor, título e originalidade a que as farofas concorrentes se submetem.

Não vou discorrer sobre o evento na forma informativa padrão. Aliás, existe o Farofarra Mundi no Facebook para quem quiser se inteirar do assunto e verificar os registros que serão transformados brevemente em livro. Não posso, entretanto, deixar de pontuar um dos toques elegantes, apetitosos e originais da festa recente: a farofa de chocolate enfeitada com Confetes coloridos e pedaços de bombons Sonho de Valsa (Hummmmmm... Demais!), cujo nome era "Só Quero Chocolate". Ganhou em originalidade. Merecia qualquer dos prêmios.

Outro ponto altíssimo foi a "Farofa da Madrasta da Branca de Neve". Imbatível no sabor. Ninguém percebeu, é claro, uma zona. A travessa ainda veio com uma linda e apetitosa maçã, salvadora da pátria para a minha netinha, que a degustou com prazer enquanto desfilava quase anônima no meio da multidão ocupada em compreender, discutir e solucionar a vergonhosa marmelada que impunha historicamente os Versiani nos primeiros lugares da competição.   

O que me cativa nesse encontro anual é o clima anárquico-democrático, bem-humorado, de esculhambação, digamos, refinada, de confraternização, de empenho quase acadêmico numa construção coletiva do que poderíamos chamar de "absurdo essencial", de alegria nem um pouco contida e de exercício do mais benéfico e salutar convívio das gentes de histórias e afinidades que se cruzam nesse tropeção que é a vida forrada com um amparo de cultura, arte e amor que nunca deixa que nos estabaquemos de mau jeito.

Já tenho até um título para meu prato numa próxima edição do Farofarra: "Que Merda é Essa?!", com o sub-título: "Uma reflexão sobre o afeto."

Parabéns, farofeiros e farofeiras!!

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Árvore da Vida

Fiquei impressionada com o filme Árvore da Vida, de Terrence Malick, agradecida aos céus, como diziam na infância de minha memória tão mineira, pela existência da obra e pela chance de vê-la, extasiada com as cenas e imagens que, continuamente, nutriam minha mente com o que julgo o verdadeiro alimento que merecemos na face desta terrinha cheia de pobrezas de todo tipo.

Há de um tudo ali! A começar pela trilha sonora forte, elegante, funcional, belíssima, com obras conhecidas de autores eruditos, como Brahms e Mahler, e a criação sempre linda e competente de Alexandre Desplat (o mesmo que fez a trilha para O Discurso do Rei).

Dialogando com Deus, evocando Jó, questionando conceitos, crenças, ensinamentos, de forma investigativa e inteligente, sin perder la ternura, com espaço para um passeio desde a criação do universo, dos primeiros seres multicelulares na Terra, com uma olhada na vida não muito fácil de espécies como a dos dinossauros , até dias bem mais recentes vividos por uma família de classe média americana lá pelos idos de 1950, o filme nos instiga a todo momento àquele mergulho reflexivo em que tanto nos perdemos como nos encontramos em boa parte de nossa existência. 

 Se me fosse dado escolher o que enviar na nave que cruzou os céus em busca de comunicação com extraterrestres, eu escolheria sem dúvida este Árvore da Vida, e não aquela Coisinha do Pai tão ridícula, medíocre e desprestigiosa, que, se nos serviu de carta de apresentação aos seres desconhecidos do cosmos, deve ter servido também como excelente justificativa para que se mantivessem à distância.

O cineasta Karim Aïnouz, comentando sobre a obra de Terrence Malick num artigo de jornal, insistiu no termo "depuração". Perfeito. A precisão com que Malick cuida e alinhava sua obra é impressionante. Sentimo-nos envoltos, do início ao fim, numa aura de mistério e encantamento, de enlevo, de sensação quase incômoda, mas dentro de nossas necessidades absolutas, de encontro e diálogo produtivos com aquele nosso velho eu, vez por outra tão estéril e fútil.

A modernidade do filme é incontestável. Mas uma modernidade com o pé na história do homem e suas questões fundamentais, uma modernidade madura, culta, experiente, carregada de referências e escolhas que fUncionam com "u". Um luxo.

Cito Cacá Diegues listando algumas das características modernosas do filme: "estrutura não linear, narração fragmentária, steadycam em permanente movimento, jump cuts para todo gosto, diálogos em suspensão e ditos em voz baixa, fotografia monocromática etc.". Simples detalhes, para um filme atemporal, magnífico.

E fecho com as palavras de Karim Aïnouz:

"Na sucinta obra de Malick tudo é preciso e tudo é misterioso. Penso no meu dia e paro de desejar que ele tenha 48 horas. Fico querendo cancelar tudo que tenho que fazer hoje e passar o dia revendo seus filmes , achando que o mundo poderia se transformar nas inesquecíveis aventuras de Terrence Malick – e nada mais".

Ah, e como são lindos Brad Pitt e Sean Penn!




quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Frases desaforísticas

"Há uma riqueza do não terminado, do não definitivo. Definir é dizer a última palavra sobre um assunto, e acho que isso é muito perigoso".  (Gonçalo M. Tavares)


"O que não me agradaria era uma ficção que tivesse uma única utilidade, como uma cafeteira".  (Gonçalo M. Tavares)


"Todos os caminhos levam à morte. Perca-se".  (Jorge Luiz Borges)


"O insuportável na vida é que todo mundo tem razão".  (de um personagem em "A Regra do Jogo", filme de Jean Renoir)


"Não sou sequestrável, mas dá para pagar um bom dentista". (Ney Latorraca)


"Senti-me só; menos quando meus amores se foram que quando minhas qualidades se ampliaram". (V.V.)


"Wim Wenders e aprendenders!".  (essa eu não sei de quem é)


"Antes ser condenado a beber cicuta que a beber sukita".  (variante de frase de Bruno Maron)

"Só começamos a estar vivos quando deixa de ser fácil".  (Gonçalo M. Tavares)

"Esquecer é uma coisa que se faz". (Gonçalo M. Tavares)

"Fotografar é emitir uma opinião".  (V.V.)

"É bem verdade que nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe".  (J. Saramago)

"Conhecer a beleza de uma coisa significa conhecê-la necessariamente de modo errado".  (Nietzsche)

"Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?".  (Mário Quintana)

"Nenhum som teme o silêncio que o extingue".  (John Cage)

"Universal é o particular de alguém imposto a todo mundo".  (Tinhorão)

"Deus é uma criação monstruosa. Eu tenho medo de Deus porque ele é total demais para o meu tamanho".  (Clarice Lispector)

"A gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde".  (Guimarães Rosa)

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Íntimo Degredo


Íntimo Degredo   (Vera Versiani)

esse meu jeito torto de olhar
vem do costume que não larga
de me defender, de desconfiar

sou curta e grossa no dizer
mas nunca desaprendi de todo
do jeito macio de gentil querer

em quantas emboscadas me meti?
em que guerras, em que pântanos?
em que breu fiz brotar o lume?
em que peito fiz cravar a dor?

antigos sinos ainda soam lentos
neste piscar de olhos costumeiro
e aquecem sedas pérolas, fazem assento
no ouro verde deste meu terreno

tantos tiros escutei noites adentro
tanto tive que inventar para aliviar a fome
quanto choro disfarçado suportei
só para criar com orgulho o meu nome

minha idade já provou sombras de cajueiros
incontáveis histórias de mãe-preta, escuros medos
minha honra já pede o cultivar de rosas
dos jardins suaves do mais íntimo degredo






domingo, 31 de julho de 2011

Miniconto de Francisco Pippio + pincelada de Manoel de Barros

Precisão  ( de Francisco Pippio, escritor e sociólogo sergipano)


  Tardezinha. O sol alaranjado, estacado no caixilho oco do quadrado da janela, tocaiava dona Laura, que se tangia desacorçoada, de um lado pro outro do único vão do barraco.

  Queixava-se da demora do filho menor, vista espichada no prumo da lixeira. Receava  que só chegasse junto com o breu da noite.

  Para bem dizer, ela nunca aprovou a lida do rebento, catando de-comer pra ela e os irmãos no lixo, apesar da precisão.

  Quando, enfim, ele riscou na moldura da porta do barraco, Laura escancarou a boca num sorriso solto, sem nem se importar com a desculpa que já vinha escapulindo das mãos abanando do menino:

  – Não deu pra trazer nada hoje. Um urubu chegou primeiro!





de Manoel de Barros:


 O menino de ontem me plange.


Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.


Tem mais presença em mim o que me falta.


Sou muito preparado de conflitos.


As palavras me escondem sem cuidado.


Aonde eu não estou as palavras me acham.


Não preciso do fim para chegar.


Do lugar onde estou já fui embora.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Ana Martins Marques

Como é bom abrir jornais, livros, publicações diversas que me passam pelas mãos e ser brindada com surpresas,  poemas de nomes desconhecidos para mim, mas que me trazem o mesmo arrebatamento, a mesma alegria, a mesma sensação de universo expandido que autores de referência me provocam.


Ana Martins Marques, poeta mineira, foi um desses nomes que me atiçaram e confortaram o espírito neste primeiro semestre.


Aí vão dois de seus poemas:



O Relógio


De que nos serviria
um relógio?

se lavamos as roupas brancas:
é dia

as roupas escuras:
é noite

se partes com a faca uma laranja
em duas:
dia

se abres com o dedo um figo
maduro:
noite

se derramamos água:
dia

se entornamos vinho:
noite

quando ouvimos o alarme da torradeira
ou a chaleira como um pequeno animal
que tentasse cantar:
dia

quando abrimos certos livros lentos
e os mantemos acesos
à custa de álcool, cigarros, silêncio:
noite

se adoçamos o chá:
dia

se não o adoçamos:
noite

se varremos a casa ou a enceramos:
dia

se nela passamos panos úmidos:
noite

se temos enxaquecas, eczemas, alergias:
dia

se temos febres, cólicas, inflamações:
noite

aspirinas, raio-x, exame de urina:
dia

ataduras, compressas, unguentos:
noite

se esquento em banho-maria o mel que cristalizou
ou uso limões para limpar os vidros:

se depois de comer maçãs
guardo por capricho o papel roxo escuro:
noite

se bato claras em neve:
dia

se cozinho beterrabas grandes:
noite

se escrevemos a lápis em papel pautado:
dia

se dobramos as folhas ou as amassamos:
noite

(extensões e cimos:
dia

camadas e dobras:
noite)

se esqueces no forno um bolo
amarelo:
dia

se deixas a água fervendo
sozinha:
noite

se te cortas com papel
ou feres o pé com vidro:
dia

se ao comer com pressa queimas
o céu da boca:
noite

se pela janela o mar está quieto
lerdo e engordurado
como uma poça de óleo:
dia

se está raivoso
espumando
como um cachorro hidrófobo:
noite

se um pinguim chega a Ipanema
e deitando-se na areia quente sente ferver
seu coração gelado:
dia

se uma baleia encalha na maré baixa
e morre pesada, escura,
como numa ópera, cantando:
noite

se desabotoas lentamente
tua camisa branca:
dia

se nos despimos com ânsia
criando em torno de nós um ardente círculo de panos:
noite

se um besouro verde brilhante bate repetidamente
contra o vidro:
dia

se uma abelha ronda a sala
desorientada pelo sexo:
noite

de que nos serviria
um relógio?





Ícaro


Somos os dois
incompatíveis
como a cera
e o sol

e no entanto
parecemo-nos
como se parecem
o açúcar e o sal

devemos
porém
deixar
de insistir

pois se até
Ícaro
caiu
em si.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Tempos de Paz

Gente, acabo de ver um filme que é uma obra-prima! (embora os cri-críticos possam insistir na falta de tecnoesfuziantes efeitos especiais, planos ou tomadas de cena que façam ressuscitar Cidadão Kane).   
Tempos de Paz (2009), de Daniel Filho, é indescritível em sua delicadeza no trato de questões humanas, das mais incontroversamente violentas às mais metafísicas.
Uma homenagem ao teatro, com grande reverência e respeito ao ser artista!
Um convite à reflexão profunda sobre a linguagem e suas variantes de sutilezas múltiplas.
Um belo tratado filosófico, dentro de um contexto histórico traumático, sobre a violência, a culpa, a submissão, o medo, a verdade...
Tony Ramos e Dan Stulbach dão um banho de atuação.
São impressionantes o alto nível, o domínio técnico e a sensibilidade desses atores!


A maravilhosa trilha sonora é de Egberto Gismonti.




José Eduardo Agualusa, em Estação das Chuvas, ed. Língua Geral, 2010:

... encontraram um bosque feito inteiramente de uma mesma cinza e dentro dele algumas cubatas também de cinza, e dentro das cubatas, esteiras e moringues e utensílios diversos, tudo de cinza. Presos aos raminhos das árvores havia centena de pequenos pássaros, igualmente de cinza morta, com as suas alegres canções de chuva cristalizadas na ponta dos bicos. As bombas dos portugueses tinham travado o curso do tempo sobre o bosque, fechando aquele instante aflito numa redoma de cinzas. Passado um instante que a todos pareceu interminável, alguém levantou o braço e tocou com a ponta dos dedos a frágil estrutura de cinzas. Então todo o bosque se começou a desmoronar, com um demorado rumor de chuva mansa, e, com ele, os pássaros e as cubatas e a utensilagem doméstica, e em breve nada havia em redor a não ser uma larga planície de cinza idêntica.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Um lindo poema de Tanussi Cardoso

sobre o nome das coisas  (para Luiz Ruffato)

I
porque todos os mistérios são santos,
não nomearemos o nome das
coisas.
ainda que os desertos floresçam
e o caos das chuvas transborde,
deles, o sangue não diremos.


II
no início era a Vida.
depois aprenderam os cães a ladrar
e o homem a chamar o nome das coisas
e os dedos a cruzar em nome de Deus.


III
ainda que encruado o Filho
ou mesmo que a serpente
renegue por 3 vezes
a árvore do desejo,
o nome não será.
ainda que lambam as chagas.
ainda que as lágrimas escorram,
toda a dor será cuspida
e o sol cumprido.


IV
quando caminhávamos na areia,
os nomes não havia.
havia o mar sem nome.
o céu, as frutas,
as pegadas dos pássaros
e o sonho havia sem nome.
tudo era simples.
simples os homens
sem nomes.


V
 eram noites
e dias indefiníveis,
as coisas.
os olhos aprendiam o verde
e pescavam sem nomear.
os olhos ouviam tudo.
maravilhavam-se de
maravilhas!


VI
quem nos carrega nos ombros?
quem nossa língua nos bebe?
a quem dizer, quero?
a quem dizer, preciso?
a quem dizer, inocentes?


VII
as coisas que não diremos
habitam as cidades
e as sombras iluminam
escuras cavernas.
os dentes, os cabelos
arranca-nos, o tigre.


VIII
vivemos dentro de nós.
estrangeiros.
percorremos estradas,
ruas, cidades. nus e
estrangeiros.
cada sorriso, cada
abraço, estrangeiros.
nossos mares e navios,
estrangeiros.


IX
o Tempo se cola ao corpo.
o rosto envelhece.
unhas expurgam.
enruga a pele.
resta esperar.


X
quantas faces temos?
qual delas se chama
amor?
quem em nós se diz a
morte?
qual acende a vela do
templo?


XI
eis que
os nomes não ditos se esquivam
e o Verbo
que era barro
se faz
vento.
                           (Tanussi Cardoso)

terça-feira, 28 de junho de 2011

Gonçalo M. Tavares II

Contra as precipitações

  Estás vivo e, no essencial, há uma falha – não se ter ainda morrido não pode ser, afinal, nunca, a última das satisfações.



Diferenças

  Se enquanto te deixas acariciar pela ociosidade podes, de longe, ser confundido com um cão, quando te levantares para agir, aí as diferenças terão de ser evidentes, sob o perigo de deixares de ser considerado humano.



A ameaça

  O projeto de enterrar, como um corpo, até ao topo, uma casa é mais violento do que a mera destruição levada a cabo por uma engenharia de explosivos. (Sob um pano ou sob a terra), bem mais ameaçador do que as ruínas fica aquilo que, mantendo a sua energia intacta, se tenta ocultar. (Quando destróis, diminuis a força do que antes era uma unidade, quando tapas, aumentas.)



Como viver?

  Guiada, em simultâneo, por um animal lento e um rápido, a carroça, desequilibrada, acabará por cair afinal para um dos lados – e o criado, que agarrava o chicote, culpará do acidente o animal mais lento, enquanto a nobre dama, lá atrás, na carruagem, não hesitará em culpar o mais rápido.



Debaixo da terra

  Estamos no âmbito do pormenor e é nele que o verme distribui o seu apetite. Pelo tempo: com a paciência ou, se quiserem, com a lentidão. E pelo espaço: com o rigor minucioso de nenhuma parte deixar por explorar.
  Como os deuses, em certos mitos de origem, os vermes conhecem comendo; devoram como aprendizagem.



O perigo

  Nada é tão perigoso como teres cumprido todos os teus deveres do dia e ainda ser manhã, teres cumprido todos os teus deveres na vida e ainda não estares morto.



Uma razão para o fazeres

  Se não acorreres ao local, nunca poderás saber se quem grita por socorro o quer receber ou dar.



Viver

  Atacado ao longo do caminho por salteadores que o roubam e maltratam, o homem, sobrevivendo, regressa por fim a casa para preparar a próxima viagem.



Estar vivo

  Como os dois pés não apenas pousados no Mistério, mas nele como que afundados – de tal forma que já duvidas se sob uma película opaca e incompreensível eles ainda existem e te pertencem –, eis que avanças o tronco tentando que pelo menos as mãos estejam fora do alcance dessa força de que não conheces origem nem limites.
  Como aquele que diz adeus quando se despede de alguém que ama e não sabe se voltará a ver, moves então a tua mão direita, que aparece, como da manga de uma camisa comum, no lado de fora do Mistério onde caíste sem seres convidado e sem desejares. Mas de fato a tua mão não se despede de ninguém – talvez peça ajuda.

domingo, 26 de junho de 2011

Coisas boas demais de se ouvir!

Três maravilhas, bem distintas, para serem escutadas, curtidas, apreciadas, degustadas. Delícias de CDs:

1) Thaís Gulin (ôÔÔôôÔôÔ) – praticamente, só inéditos.
2) Áurea Martins (depontacabeça) – neste disco Áurea canta nosso genial autor Hermínio Bello de Carvalho.
3) Eladio Pérez-González (canciones populares españolas, de Manuel de Falla; Nicolas Pérez-González; H. Villa-Lobos; Joaquin  Rodrigo) – infelizmente, este CD não está sendo comercializado. Com muita sorte e paciência, poderão ouvi-lo através das benesses da internet. Pretendo colocá-lo aqui em breve.



PAREM DE JOGAR CADÁVERES NA MINHA PORTA  (Affonso Romano de Sant'Anna)

Parem de jogar cadáveres na minha porta.
Tenho que sair
– respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeligs.
Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos por onde passo.
Estou em Essauíra, na costa do Marrocos
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.
Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.
Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi
frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.
Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
– na Cidade Proibida na China.
Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
na minha cama
dificultando
que alcance o corpo da mulher que amo.
Afastem de mim
o meu
o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
como um Sísifo moderno
desesperado
julgar
– que o tinha que carregar.



3 X NIETZSCHE  (Affonso Romano de Sant'Anna)

Deus
não precisa da autorização de Nietzsche
para existir
nem de fanáticos que declaram guerra
aos infiéis.
Deus
– ou que nome se lhe dê –
não necessita de preces, lágrimas, promessas.
Deus sequer lê poemas.
Na melhor das hipóteses
                     – os escreve
mas não assina
nem os divulga.
Na verdade, não necessita sequer
de nossa leitura.
Ele está em todas as partes
e acha vã nossa procura.
E quando lê livros de filosofia, ri,
soberano
         – de nossa loucura.

Quando Deus tomou conhecimento
das teorias de Nietzsche sobre a "morte de Deus"
estava, como sempre, ocupado
em fazer e refazer galáxias
pelo elementar prazer divino
de recriar-se eternamente.
Desconsolado, então,
Nietzsche se matou.
Pesaroso, Deusfoi ao seu enterro
como não podia deixar de ser.

Ele vai ao Grande Mercado Nietzsche
adquirir artefatos para seu discurso.
Há ferramentas para multiuso
abrem e fecham qualquer porta
e conceito.
Na entrada
deve-se pegar um cestinho
para colher o que se pode das prateleiras.
Se não se acha o que se procura
basta ir um quarteirão mais adiante
em duas lojas tudo se encontrará
– uma se chama Foucault
             – a outra Derrida.

domingo, 19 de junho de 2011

Gonçalo M. Tavares I

Deixo aqui o registro de algumas das belas páginas "poético-aforísticas" do Breves Notas Sobre o Medo, de Gonçalo M. Tavares.




Problemas, respostas


  A matéria-prima, falemos assim, da resposta parece ser de menor valor cambial que a da pergunta. Isto se as colocarmos – pergunta e resposta – no mercado dos homens em cuja existência a curiosidade tomou o seu centro. No entanto, como bem sabemos, estes homens são uma minoria. Em todos os outros mercados (e há tantos), prevalecem homens que decidem sobre a vida e a morte de outros, homens cujo destino lhes mostrou já um lado trágico, inultrapassável; e nestes outros homens, nestes outros mercados, cada resposta é o único valor a ser transmitido. Aos seus filhos, por herança, esses homens deixarão decisões e modos de viver; enquanto de oferta às pessoas que odeiam deixarão aquilo que não conseguiram resolver em vida – tal como, para assustar, os criminosos deixam, à porta do inimigo, a cabeça degolada de um cavalo.




Os imortais


  Como um poeta que se esforçasse por ser elogiado por outra coisa – que não a fragilidade que exige de imediato uma coragem – , certos homens insistem em não esperar a morte e devido a essa distração são sempre apanhados – como a mulher adúltera pelo marido – descompostos, de corpo desnudado, exibindo por falha uma luz imoral que sempre juraram não ter.
  E porque observados, e incapazes – eis o pior – de acionar o mais leve movimento de pudor, os que fingiam imortalidades caem por completo sem um único preparativo terminado. Morrem no momento em que traem, quando os velhos manuscritos aconselham a acabar-se a vida na posição do sacrificado, na figura daquele que outros enganaram e que outros venceram.




Falar, ouvir


  Tratas as palavras que dizes como se fossem passageiros de primeira classe e tu um empregado servil e, face às palavras dos outros, comportas-te como se elas fossem o empregado servil e tu o passageiro que viaja em primeira classe.




Moral


Eis então – porque nada em ti caiu de podre – que morres contente como se tivesses nascido já dentro de um jogo e todas as tuas ações fossem no sentido de, com delicadeza, perceber primeiro as regras e só depois decidir em que equipe se combate e quais os objetivos e movimentos possíveis. Porém, há jogos complexos cujas regras parecem ter sido feitas para que nenhum mortal as consiga perceber.
 Trata-se de jogar, insiste contigo o mundo. Mas com que regras?, insistes tu com o mundo. E a resposta acaba sempre por chegar no momento ou no espaço errados. Ou então numa Língua da qual conheces dois ou três vocábulos, insuficientes sequer para, à hora da refeição, num restaurante, escolheres o prato certo.




Acalma-te!


  Mesmo que desças até o ponto em que deixas de observar a claridade da superfície, não te inquietes demasiado, pois a superfície do mundo, também ela, em poucas horas (a noite aproxima-se) ficará escura.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Rosane Duá

No corre-corre desenfreado que caracteriza os meus dias (e os vossos?) nos tempos atuais, às vezes, cometo atrasos imperdoáveis tanto em leituras quanto no escutar íntimo e particular de gravações, que frequentemente se acumulam em estantes e arquivos, à espera do abençoado momento do desfrute.

É com o atraso de pelo menos um ano que desfruto o CD Todos Nós, de Rosane Duá.

Cercada de músicos e compositores de talento incontestável, veteranos de peso da nossa história musical, como Jota Maranhão, Juca Filho, Jorge Vercilo e Mingo, Rosane Duá conta com Theo Santos como produtor musical, instrumentista e arranjador. Só este detalhe já imprime dose considerável de nobreza ao trabalho.


Theo Santos é um dos músicos mais geniais que conheci. Além de ser uma pessoa culta, generosa e delicada no trato, possui a capacidade rara de ouvir com atenção e ternura qualquer frequência sonora audível, da mais simples tagarelice ao mais nobre resmungo, sussurro ou latido, processando-a em criações artísticas surpreendentes.


Theo Santos é uma figura ímpar no meio musical, digo, no Brasil, digo, no mundo, dessas que marcam para sempre qualquer alminha que tenha o privilégio de cruzar o seu caminho.


Há pessoas que parecem a nós, pobres mortais, pertencentes ao rol de privilegiados que têm passe para os inalcançáveis vales do Éden!


A bonita Rosane Duá, arquiteta, artista plástica de primeira, especialista na sedutora arte dos mosaicos, revela-se agora a mim como uma incrível cantora (e compositora): voz impecável, timbre-carícia, maestria no apoio, sensibilidade no dizer e na emoção do cantar.


Tiro meu chapéu pra você, Rosane Duá!
E obrigada pela chance de ouvi-la, mesmo que tardiamente.

domingo, 29 de maio de 2011

Inês Pedrosa

"O muro desmoronou-se, Berlim já não se alimenta de mentiras... No entanto, os anjos continuam a deambular pelas ruas da cidade, atraídos pelos fragmentos de solidão que transformam as pessoas em muros."




"O desejo é atraído pelo muro e pelas mentiras, alimenta-se deles sem querer, porque o desejo não sabe senão desejar. Esbarra num muro, olha para o infinito do céu e transforma a rigidez do cimento numa montanha rochosa a escalar. Da areia das palavras faz ouro puro, escaldante – o desejo não aceita a erosão e o frio do mundo."


"Não há desejos intransitivos – mas há desejos equivocados, perdidos, extraviados, desejos que nos atravessam sem nos tocarem."


"Enquanto o meu marido me batia, pedia em silêncio ao meu pai que descesse do céu para nos salvar. Mas as regras do jogo de Deus são outras, matemáticas e claras, como dizia o meu pai: temos apenas a liberdade das nossas escolhas, os anjos observam, anotam os pontos que as pequenas peças cá em baixo vão somando, suspirarão talvez diante da absoluta previsibilidade da violência, do infinito tédio da violência, e é tudo."




"Seria possível viver sem clandestinidade?"



"A paz é para os mortos. E nem todos, parece-me."


"Quando muita gente acredita em alguma coisa, essa coisa passa a existir."


"O riso é mais contagioso do que a dor."


"Por agora, danço entre os arranha-céus até que eles se diluam, danço como se tu pudesses renascer da água dos meus olhos, inundada de luz."


"A paixão da paciência sempre se sabe rir das paixões maiores."


"Há no bem uma força contínua, uma música inesquecível que permanece para lá da fúria ruidosa do mal."


"Os mortos tornam-se secretos para apaziguar a alma dos vivos."


"O erro é a melhor definição da humanidade."


"O futebol é um altar alternado de desgraças e milagres, o campo da injustiça democrática, do poder arbitrário, da sorte inesperada."


"A mesma dor nunca é a mesma."


"Um anjo não chora, mas nem por isso é menos triste."




sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Os Xerifes da Língua"

Meu registro de hoje, contrabalançando as opiniões furiosas veiculadas pelos jornais ao meu redor, serão dois: ambos sobre a recente polêmica em torno do livro didático, adotado pelo MEC, da professora Heloísa Ramos.
O primeiro, uma crônica bem-humorada de José Ribamar Bessa Freire para o jornal Diário do Amazonas, em 22/05/2011.
O segundo,opinião informal, ágil e gabaritada do poeta Cacau Leal enviada por e-mail.






I)

OS XERIFES DA LÍNGUA (José Ribamar Bessa Freire)


Os toques de clarim e o rufar dos tambores chamaram a Infantaria e a 7ª. Cavalaria. O Exército colocou de prontidão os seus soldados armados até os dentes: a tropa da Academia Brasileira de Letras (ABL), o batalhão dos jornalistas, a brigada ligeira dos escritores, a legião de políticos, o pelotão do Ministério Público e até algumas divisões blindadas da Universidade. Todos eles irmanados na santa cruzada lançaram o grito de guerra que ecoou pelos campos, vilas e cidades do Brasil, ameaçando o inimigo:


- “Oh, vós, que desejais assassinar o idioma. Liquidar-vos-emos. Avante!”.


O inimigo é o livro “Por uma vida melhor” da professora Heloísa Ramos, adotado pelo MEC, que é apenas a ponta do iceberg. Lá, a autora apresenta a diferença entre falar e escrever e reconhece que na fala existe muito mais variação do que na escrita. O jeito de falar muda bastante, de acordo com a região, a classe social e a situação de comunicação. A mesma pessoa fala diferente se está em casa, na feira, no bar, no tribunal ou na igreja.


- “Existem várias línguas faladas em português” – já disse o escritor José Saramago, prêmio Nobel da literatura. Nesse sentido, cada um de nós é “bilíngue” na própria língua. Uma dessas línguas é a chamada ‘norma culta’, a de maior prestígio em nossa sociedade, que é usada na sala de aula e está mais próxima da escrita formal. Outras são as variedades populares, regidas por uma diversidade de regras, mas que não chegam a prejudicar a intercompreensão.


Acontece que milhões de brasileirinhos chegam à escola, falando segundo as regras da variedade popular. Por isso, são ridicularizados e humilhados. Dessa forma, são levados a se envergonharem das variedades que a norma culta considera “erradas”, e não se apropriam, nessas condições adversas, da outra variedade considerada “certa”. São reprimidos. Sua fala fica excluída dos espaços públicos, comprometendo o exercício da cidadania.


Esse fato demonstra a incapacidade do Estado, que não encontrou ainda o caminho para permitir que todos os alunos transitem pela norma culta. A autora defende, então, que a alternativa é admitir que a variedade popular EXISTE, tem suas regras e é legítima. As duas normas não se excluem, mas se complementam. O respeito ao jeito de falar do aluno cria um ambiente acolhedor e propício à aprendizagem da norma culta. Só isso.


Mas tal proposta foi suficiente para que os xerifes da língua, que combatem a diversidade, disparassem suas armas alegando, alguns deles, que o MEC quer instituir o “lulês” como idioma oficial. Distorceram – ou no mínimo não compreenderam (será que leram?) - o que está escrito no livro. Eles acham que quem defende o respeito à norma popular quer impô-la ao conjunto da sociedade, como eles o fazem com a norma culta. Por isso, chamam a 7ª. Cavalaria!!!


As cavalgaduras


A cavalaria veio. Na linha de frente, cavalgando um pangaré manco – tololoc, tololoc - o centurião José Sarney (PMDB, vixe-vixe!), membro da ABL, ex-presidente da República e presidente do Senado. No artigo ‘Fale errado, está certo’ na Folha de SP – com a espada em riste, ele faz aquilo que fez ao longo de sua vida: atribui aos outros seus próprios defeitos. Escreve que o livro em questão pretende “oficializar a burrice”, que “o Brasil resolve criminalizar quem fala corretamente”, quando é justamente o contrário, e que “defender a língua é defender a pátria”.


Sarney, defensor da pátria? Quaquaraquaquá! O que é ‘a língua’ e o que é ‘a pátria’ para ele? Em sua ‘pátria’ não cabem os deserdados, apenas os beneficiados pelo nepotismo. Já a ‘língua’ que defende não é um sistema variado, dinâmico e rico, mas se reduz à norma culta, que ele congela. Elimina as demais variedades, proclamando que apenas uma variedade é o português, embora nas conversas telefônicas com sua neta, que ouvimos gravadas e reproduzidas pelos telejornais, a norma usada para contratar o namorado dela, mais coloquial, não foi bem a que ele defende.


Da mesma forma, Sarney, o vixe-vixe, protesta com indignação contra a anarquia:


- “Voltemos ao sistema tribal: cada um fala como quer”.


Imagina! Que país é esse onde cada um fala como quer e não como os sarneys da vida pretendem impor! Sarney, que passou a vida confundindo a coisa pública com a privada, sobretudo no que se refere à grana, quer privatizar também a língua. Acha que ela é sua e dos seus. Não reconhece que se trata de produção coletiva. Nem sequer suspeita que existam regras no falar popular. Exige que a norma culta seja o padrão de correção de todas as demais variedades, confirmando o que escreveu Roland Barthes:


- “A língua não é fascista quando impede de dizer, mas quando obriga a dizer de uma determinada forma”.


Cavalgando um burro alazão – tololoc, tololoc – o presidente da ABL Marcos Villaça também atacou o livro. Reduziu a riqueza do idioma a uma reles operação aritmética, com uma visão primária da matemática, dizendo que admitir outras formas de falar “é como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre doze, seja na periferia ou no palácio”.


A mesma imagem foi usada por sua colega, a escritora Ana Maria Machado, que esqueceu o que ensinou quando foi minha professora de Comunicação Fabular e Icônica na UFRJ. Ela reforça essa comparação infeliz: “Equivale a aceitar que dois mais dois possam ser cinco, com a boa intenção de derrubar preconceitos aritméticos”. Trata-se de uma falácia, porque ninguém está reivindicando que 2+2=5, mas a possibilidade de ser 1+1+1+1 ou 3+1 e até 2+2=5-1 e assim por diante, já que o quatro contém o infinito.


Mas quem se superou mesmo em bobagens foi o jornalista Merval Pereira - um projetinho de Sarney - que veio cavalgando uma besta de sela desembestada: tololoc, tololoc. Em sua coluna no Globo concluiu que se o português popular é legitimo, então ele deveria “ser ensinado nas escolas e faculdades”, como se fosse preciso ensinar o que já se sabe.


Merval condenou ainda o que chamou de “pedagogia da ignorância” e criminalizou o livro adotado pelo MEC: “Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância”.


Os criminosos


Ops! Vocês ouviram o que eu ouvi? Ato criminoso? Pois é. Parece que os xerifes do idioma querem criminalizar a desobediência às regras da norma culta, reproduzindo o que aconteceu na Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da Amazônia (1832-1840). Bilhetes escritos pelos cabanos, anexados aos processos criminais, foram exibidos nos tribunais durante o julgamento como “prova de seus instintos criminosos”. Um deles assinado por Antônio Faustino, um cabano com a patente de major, diz:


“Axome çem monisão que muntas vezis teno pidido. Çe uver cunfelito aqi não çei o qe soçederá. Estarei em pouçilitado de zequtar qalqer prugetu. Halguns camaradas já çairão daqi pur farta de cumer”. Pontu da Barra, 3 de otobro de 1835. Antonho Fostino, manjor de artilharia.


O outro, que também se encontra no Arquivo Público do Pará, “com uma caligrafia feita de garranchos”, é de um chefe cabano que adverte o presidente da Província:


“...E se V. Exa. Responsave pellos mal desta província não sortar logo logo móhirmão e outros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil Ome i não dexar Pedra sobre Pedra”.


Um terceiro documento, escrito pelo tenente-comandante de Soure, é um ofício dirigido ao cabano Eduardo Angelim, que ocupou o cargo de presidente da Província:


“Rogo a V. Exa. Nois quera há-remidiar com algun çal e mesmo harmamentu que estamos mointos faltos deles. O mais V. Exa. verá no Pidido jontu q. faz obegeto tãoben desti ufisio. Deos guarde V. Exa. pur moitos anus. Soure, 13 de Dezembru de 1835”.


Que Deus guarde a ABL, Sarney e Merval pelo período de tempo acima indicado, bem como proteja políticos como o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), para quem o livro adotado pelo MEC “está transformando a ortografia em pornografia gramatical” e até o senador Cristovão Buarque (PDT), ex-reitor da UnB e ex-ministro da Educação, que declarou sobre o livro em questão:


- “Claro que o livro deseduca e, pior, mantém o apartheid linguístico. Manter o português errado é um crime, é manter a desigualdade”.


Crime? Desigualdade? Segundo Boaventura de Souza Santos, devemos “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”. Não se trata, evidentemente, de adotar as normas dos cabanos, mas de recusar sua criminalização.


A professora Heloisa, que fez um trabalho cuidadoso, está sendo tratada como “criminosa” segundo algumas divisões blindadas da própria Universidade que também entraram em ação. Cláudio Moreno, doutor em Letras, ameaçou no jornal Zero Hora de Porto Alegre:


- “O livro tem que ser proibido e as pessoas devem ser punidas”.


Não disse que tipo de punição considera mais adequada. Acionado, o pelotão do Ministério Público partiu para o ataque. A procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, cavalgando um jegue – tololoc, tololoc - considerou o livro citado como “um crime contra nossos jovens”, ganhando manchete de página no Globo. “Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente, sofrerá ações do Ministério Público”, avisou a procuradora.


O historiador peruano Pablo Macera comenta que se o Império Romano conseguisse proibir o latim vulgar, como querem agora os xerifes da língua, nós não estaríamos hoje falando espanhol, português, francês, italiano, romeno, catalão – todas elas variantes “erradas” do latim clássico, conhecidas como línguas vulgares na Idade Média.


A troca de ‘l’ em ‘r’, que costuma ser considerada como “atraso mental”, quando alguém fala “pobrema”, “craro” ou “pranta” é um fenômeno fonético presente na formação da língua portuguesa, como esclarece Marcos Bagno. Palavras latinas como “blandu, clavu, flacu, sclavu, obligare” mantiveram o “l” no espanhol, no francês e no italiano, mas ficaram consagrados na norma culta da língua portuguesa com o “r”: “brando, cravo, fraco, escravo, obrigar”, etc.


Os xerifes querem continuar hegemônicos na formulação da política de línguas, autoritária e intolerante. Para isso, manipulam a opinião pública, ignorando a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, aprovada em 1996 em Barcelona, num evento realizado com o apoio da Unesco, recomendando que “os direitos linguísticos sejam considerados direitos fundamentais do homem” e que as diferenças linguísticas sejam respeitadas.


P.S. – Agradeço os colegas do COMIN e da EST, de São Leopoldo (RS), e os colegas da lista Uerj XXI, com quem pude trocar ideias sobre essa questão. Eles não têm, no entanto, qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pela forma desse texto.



II)

Não li o livro de Heloísa Ramos; e nem preciso mais. Porque, vou dizer, destaque assim nem nas escolas de samba. O caso é simples: cadê a democracia? Para certas coisas não há democracia; ou, pensando bem, há sim. Exemplo: como fica o caso do Guimarães Rosa? - que amo!!! Os textos estão escritos num ritmo regionalista, com a forma regionalizada, reproduzindo - como na "flor do lácio" do sertão - o falar conforme é lá no Urucuia. Quantos prêmios levou? Ao tentar ver, frontalmente, o que essa professora disse, mas foi mal interpretada, o Rosa já tinha patenteado. A palavra pronunciada do jeito que os ouvidos ouviram ou escrita do jeito que a vida ensinou não muda o querer do enunciante. Falta democracia linguistica; o discurso da "superioridade erudita" quer se impor unilateralmente. É o tal mundo "acadêmico e estúpido", que quer levar para dentro dos limites do seu reino mas não entende "a Flor do Lácio sambódromo, lusa-américa latim em pó". Quando a coisa interessa ganha fama; exemplo dos surrealistas, que escreviam o que lhes vinha do inconsciente à cabeça, sem a interferência da norma vigente, externa. Nada contra! Não era onde se faz esse discurso, era esse protesto ontem, há mais de meio século. Guimarães e os surrealistas podem. O povo, sem escola, teto e rango e o metarlúgico Lula, ah, esses, ora porra, não podem. Fora!!! Todo esse discurso alarmista e latifundiário é movido pelo preconceito sóciolinguista dos verdadeiros imbecis. Acho, pois não li o livro, que o propósito da professora não era o de pregar a subversão da língua culta. Isso tá na cara! Provavelmente, o que ela enfatizou, ou quis evidenciar, é que o uso da língua popular, com os erros fonéticos e morfológicos da língua viva, habita a casa de veraneio dos privilegiados assim como as palafitas do Capibaribe, sendo que nestas as subversões involuntárias sofrem todos os tipos de preconceitos confederativos . PT 23.05.11



Cacau Leal


PS. Olha só essa do Caetano sobre o "the books" e "os livro": "devemos louvar a hegemonia do inglês (e a sua combinação de altíssima entropia com capacidade de acolher repertórios de outras línguas)? Ou o quê?"


Viva o Olodum!


Viva o Grupo Eco!