domingo, 13 de agosto de 2017


Ai que saudade do Drudo! Ele, com certeza, recortaria e me entregaria, carinhosamente, em mãos, para meu deleite e reflexão, o seguinte artigo, de autoria do colunista Marcio Tavares D'Amaral, que copiei de O Globo ontem:


Acédia de Deus

Acédia” é uma palavra de uso raríssimo. Restringe-se quase ao elenco dos pecados capitais. É em geral lida como “preguiça”. Nas origens não foi óbvio pô-la nessa posição. Evágrio do Ponto, no século IV, propôs oito pecados. Entre eles, ao lado da preguiça, a melancolia. No século VI Gregório I juntou a melancolia e a preguiça na indolência. Tomás de Aquino, no século XIII, considerou a melancolia demasiadamente vaga, e pôs a preguiça nesse lugar de abandono de si, da relutância à ação. Os oito pecados de Evágrio acabaram sete, e são os que até hoje conhecemos. Entre eles a acédia. Ando preocupado com a possível acédia de Deus.

Vamos com calma. Deus não peca. Pecado, termo hoje fluido no léxico habitual, é uma dessas palavras traiçoeiras, que julgamos entender e passamos adiante. Não é. Banalmente associou-se o desvio categórico da Humanidade (“Adão”, o homem, e “Eva”, a cheia da vida) ao sexo, à luxúria. E chamou-se a isso o “pecado original”. É pouco. Original, o sexo? Terá talvez sido o orgulho, o desejo de ser igual a Deus conhecendo o segredo da vida e o sentido do bem e do mal, o pecado “originário”: o que deu origem a uma Humanidade separada do Absoluto. Mas a palavra tem um sentido mais largo. Vem do hebraico chata’th, e foi traduzida em grego por hamartia. Em ambas as línguas significa “errar o alvo”. A Humanidade, desligada da sua raiz transcendental, às vezes tem problemas de mira. Acerta e erra, e essa é a sua natureza. Ora, Deus não erra. Sua pontaria é certeira. Dizendo curto: Deus não peca. Ainda assim, tenho medo da acédia de Deus.

Deus não padece de preguiça. Criou o mundo com sua extraordinária complexidade. E continua criando. O mundo não está completo, graças a Deus. A ele e a nós, suas criaturas-semelhantes. Nós somos chamados à com-criação. Essa bonita ideia da mística judaica dá conta de uma das dimensões da “imagem e semelhança”. Fomos feitos livres, à imagem da libérrima pessoa de Deus, e ainda quisemos mais, e nos separamos dele. A Humanidade é o sinal dessa separação. Deus está lá, e espera. Estará triste com o nosso abandono? Quem saberá dessas coisas altíssimas? Está lá e não desistiu de nós. Por isso continua criando um mundo que possa ser uma ponte para a nossa volta. E como na liberdade está embutida a capacidade de criação, também criamos, junto com ele, pedaços dessa passagem. Erigimos religiões, teologias e altares para o reencontro e a religação. Talvez estejamos errando o alvo, mas não desistimos de tentar. É por esse duplo movimento que podemos dizer, como se o soubéssemos de verdade: Deus não é preguiçoso, não descansou. Trabalha. Em si mesmo e em nós. Não é essa a acédia de Deus.

Mas há a melancolia. A tristeza. Deus pode estar triste? Quem saberá dessas coisas altíssimas? Mas teria motivos. Não que não haja, entre os sete bilhões de pessoas que hoje esmagam o planeta, os bons e generosos, os humildes e alegres, os santos da vida. Mas, no atacado, vamos muito mal. Pode-se dizer que nunca foi diferente. Que sempre, aqui e ali, as guerras, as fomes, as injustiças e o desamor apedrejaram as criaturas de Deus. É verdade. Mas agora o Mal se planetarizou. O Mal no atacado, a generalização do Mal, sua simultânea obscenidade e banalização podem, quem sabe, pôr sombra no coração amoroso de Deus. “Criados à imagem e semelhança” não pode também significar que Deus conserva em si a nossa imagem, e que (mas quem saberá dessas coisas imensíssimas?) às vezes ela lhe pesa no coração? A tristeza de Deus! Que ideia absurda! Fora dos trilhos. Sim, extra-ordinária. Nós quisemos o ordinário de uma vida dominada pela nossa vontade. Em termos religiosos tradicionais, isso significa: nós quisemos abandonar o Paraíso. Mas o extra-ordinário não nos abandonou. Ressoa na nossa memória. Não será que nós também (porque a semelhança não é unilateral) ecoamos no tempo sem memória de Deus? Ele não nos sentirá, continuamente? Se for assim (mas, Senhor, quem saberá dessas coisas sutilíssimas?), tem todo o direito de estar profundamente triste. A acédia silenciosa de Deus.

Bento XVI perguntou diretamente: “Senhor, por que silenciaste?” E era o papa! Como devemos nos sentir nós, o povo comum, diante da possibilidade de que, abandonado tão rudemente uma vez, ele agora possa estar pensando em consumar o abandono? Não o fará, sua natureza totalmente amorosa, em que é a bondade que determina a justiça, o vencerá na última hora. Quando o Anjo já tiver a espada erguida sobre nós. (Parece que já tem...) Não conhecemos verdadeiramente Deus. Não saberemos nunca se essa cena poderia se apresentar. É não sabermos, não podermos saber, que põe na espera do golpe a esperança de que não venha. Esperança assustada. Mas melhor do que coisa alguma. Melhor do que nada.


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