domingo, 17 de abril de 2011

Ciorânicos I, II, III, IV

Lavra pessimista     (I)


Não se fazem poemas em meio a desatinos
Não posso escrever poemas neste mundo louco

Impossível o nascer de poemas sob bombardeios
De notícias desvairadas sobre tudo e todos


O poema se esconde debaixo do travesseiro
Onde sonhos ainda escapam às verdades


O poema se esquiva qual sombra na madrugada
A vasculhar em vielas e becos insondáveis


E enfrenta frio, dores, chuvas de granizo
Penetrando névoas, nuvens e neblinas


E encontra a si mesmo assim meio perdido
Tropeçando vez por outra em suas rimas


O poema é vento e seu açoite
O poema é brado em plena noite
O poema é louco e teimoso


Seu sorriso de escárnio meio muxoxo
É tudo o que posso no momento alcançar


Mas o poema é hábil e sutil, regente
Nas artes mágicas do rompante
Revelando-se iluminado e quente
Surpreendentemente me alcança
Reinventando salões de primavera
Como última novidade urgente
Da lavra pessimista do poeta
                                             (V.V.)





Ciorânico     (II)


Hipótese mal formulada
Tese sem comprovação
Tendência ao negativismo
Noticiários de televisão
Delta menor que zero
Casos sem solução
Nenhuma nesga de luz
Teorias sem unificação


Propensão à vadiagem
Erro crasso na dosagem
Desvio certo da bagagem
Déficit de aprendizagem
Estrago pela ferrugem
Compulsória hospedagem
Drama inócuo em longa metragem
Desgraça pouca é bobagem
                                                (V.V.)





Recurso à mão     (III)


Desta janela de um oitavo andar
Reconheço pedras, poucos verdes, chão
Asfalto gasto, gastas novidades
Pássaros que ainda resistem com disposição
O vendedor de balas, doces, mariolas, pirulitos
Que me amedrontava infância e delírios
Com sua verruga exposta sem recato
E seu topete mal ajambrado de glutão
Tudo faz recheio audível e ameniza a tarde
Mas talvez esse tudo não passe de impressão
Pois a vida se processa em mil lampejos
Com seus achos, sintos, pensos, imaginos
Sujeita a estúpidas e várias
Displicentes, incoerentes
Inocentes desmedidas
Além de múltiplos recursos de interpretação


Desta janela de um oitavo andar
Minha imobilidade festeja o salto único
Em que construo em vão meus desatinos
E despejo meus vazios nos vazios do mundo
                                                                   (V.V.)




Pequenez     (IV)


Contenta-te com problemas fáceis

Felicita-te por desafios medíocres

Envolve-te em relações vazias

Atrofia tua mente

Despreza o próximo

Finge o exercício de tua cidadania

Trapaceia no domínio do lar

Deseduca teus filhos para o amor

Ou não os tenhas, que é bem mais barato

Serás alguém, com certeza

Outros preferem rezar
                                     (V.V.)




      AFORISMOS IMPLICANTES   (uma pequena amostra da edição IV)  


 Por um triz é o estado de tudo.
   
Grandes violências têm fala leve e delicada.
  
Enterro triste é quando não há despedida.

 Palavras e silêncios dizem mais do que almejamos.

  
A obra que cativa contém todas as risadas do mundo.
  
Até no caminho do meio, cuidado, teu rastro deixa cheiro.

Um comentário:

  1. Gosto muito desse seu diálogo poético com Cioran, entre combates e condescendências.
    "E despejo meus vazios nos vazios do mundo".

    Beijos,
    Raul

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