sexta-feira, 4 de março de 2011

Waly Salomão I, II, III, IV e V

CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY


A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queima de arquivos,
divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.

Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?

Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido o que traz
a marca d'água d'hoje.

Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozoniais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.

Nulla die sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.

E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano
fardo.

Corrigindo:
                    o humano fado.





UM LEGADO
DE WALLACE STEVENS


Assim como quem
       – agnóstico, cético, sarcástico, incréu –
estende réstias de alho por toda a casa,
para afastar mau agouro.

Assim como quem plurifica
a ferocidade da mente,
zela pela aura, aurora de cada palavra,
com ritmo penetra, sexualiza a fala,
colore com finuras, matizes de papel de seda,
                                   o balão do pensamento
tornando-o inda mais chiaroscuro, espermático;

e com cerol de vidro moído, cola de sapateiro,
afia, tempera o laço mágico
que rabeia a sorte, compele o futuro
e provê um canto, um giro diverso para cada ato.

Um retângulo de morro/
um recorte losango de céu azul-turquesa/
o teatro gestual-masturbatório das mãos/
linhas e linhas e linhas/
e o móbile rompe nuvens,
rasga novos desenhos sobre o mapa celeste.

Cumprir uma receita ancestral,
de prístina pureza:

encharcar ao longo do poema inteiro,
do começo até o fim,
metáforas, metáforas, metáforas.

Metáforas à mancheia:

uma arraia-miúda
intenta
ser deus entre deuses.





ANTI-VIAGEM


Toda viagem é inútil,
medito à beira do poço vedado.

Para que abandonar seu albergue,
largar sua carapaça de cágado
e ser impelido corredeira rio abaixo?
Para que essa suspensão do leito
da vida corriqueira, se logo depois
o balão desinfla velozmente e tudo
soa ainda pior que antes pois entra
agora em comparação e desdoiro?

Nenhum habeas corpus
é reconhecido no Tribunal de Júri do Cosmos.
O ir e vir livremente
não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
Ao contrário, a espada de Dâmocles
para sempre paira sobre a esfera do mapa-múndi.
O Atlas é um compasso de ferro
demarcando longitudes e latitudes.

Quem viaja arrisca
uma taxa elevada de lassitudes.
meu aconchego é o perto,
o conhecido e reconhecido,
o que é despido de espanto
pois está sempre em minha volta,
o que prescinde de consulta
ao arquivo cartográfico.
O familiar é uma camada viscosa,
protetiva e morna
que envolve minha vida
como um parachoque.

Nunca mais praias nem ilhas inacessíveis,
não me atraem mais
os jardins dos bancos de corais.

Medito à beira da cacimba estanque
logo eu que me supunha amante
ardoroso e fiel
do distante
e cria no provérbio de Blake que diz:

EXPECT POISON FROM THE STANDING WATER.





RUA CARIOCA 1993


Estilo tísico (corte cronológico século 19)
de ser poeta.
Estilo tísico abre a boca e fala de rua
como se pavimentasse
com paralelepípedos
seu gabinete engasgado.
O que estilo tísico pensa ser rua:
rua não é nem rua foi.
Saudades do sapo ou do peixe-boi.
São imagens roubadas de poemas e poetas,
recortes, recopilações, reprises,
amostras grátis,
coágulos sem sangue,
próteses da fantasmagórica Rua do Sabão.

Sem a vitalidade amarelo-estridente
de um cravo de defunto.





TAL
QUAL
PAUL
VALÉRY


dorenavant, doravante,
(somente em algum caso específico
com calculado efeito retroativo)
cada poema
...onde tudo é equilíbrio
e cálculo
como na música de Stravinsky.
Valéry não é arremedo de escudo
para o acuado remoedor do ar de medo:
um poema deve ser uma festa do intelecto.
E poemas e festas e intelectos implicam riscos.
Cuidado para não escrever:
ali, onde tudo não é senão ordem e beleza,
luxo, calma e volúpia.
Mas nada de emenda
pois este paraíso-artefato
só se atinge de fato no poema.
Por que proibi-lo de ser o delírio das sensações?
Por que propor, ó fedelho, um cinto de castidade
e uma presilha para uma donzela-musa
deflorada e redeflorada cuja virgindade
só se recompõe por gosto de ser
deflorada e redeflorada mais?
Às vezes, ela clama para ser estrupada
mas não por você que fede a cueiros.

Sei, com os antigos e alguns vivos,
que a fobia castra os ritmos
e as formas da coragem.
Sá de Miranda, Camões, Cesário,
João Cabral, Augusto, Ashbery:
a resolução de ser poeta
sem precisar o peito
estufar
de vãvaronice.
E, no mais,

       POESIA É O AXIAL.

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