Contra as precipitações
Estás vivo e, no essencial, há uma falha – não se ter ainda morrido não pode ser, afinal, nunca, a última das satisfações.
Diferenças
Se enquanto te deixas acariciar pela ociosidade podes, de longe, ser confundido com um cão, quando te levantares para agir, aí as diferenças terão de ser evidentes, sob o perigo de deixares de ser considerado humano.
A ameaça
O projeto de enterrar, como um corpo, até ao topo, uma casa é mais violento do que a mera destruição levada a cabo por uma engenharia de explosivos. (Sob um pano ou sob a terra), bem mais ameaçador do que as ruínas fica aquilo que, mantendo a sua energia intacta, se tenta ocultar. (Quando destróis, diminuis a força do que antes era uma unidade, quando tapas, aumentas.)
Como viver?
Guiada, em simultâneo, por um animal lento e um rápido, a carroça, desequilibrada, acabará por cair afinal para um dos lados – e o criado, que agarrava o chicote, culpará do acidente o animal mais lento, enquanto a nobre dama, lá atrás, na carruagem, não hesitará em culpar o mais rápido.
Debaixo da terra
Estamos no âmbito do pormenor e é nele que o verme distribui o seu apetite. Pelo tempo: com a paciência ou, se quiserem, com a lentidão. E pelo espaço: com o rigor minucioso de nenhuma parte deixar por explorar.
Como os deuses, em certos mitos de origem, os vermes conhecem comendo; devoram como aprendizagem.
O perigo
Nada é tão perigoso como teres cumprido todos os teus deveres do dia e ainda ser manhã, teres cumprido todos os teus deveres na vida e ainda não estares morto.
Uma razão para o fazeres
Se não acorreres ao local, nunca poderás saber se quem grita por socorro o quer receber ou dar.
Viver
Atacado ao longo do caminho por salteadores que o roubam e maltratam, o homem, sobrevivendo, regressa por fim a casa para preparar a próxima viagem.
Estar vivo
Como os dois pés não apenas pousados no Mistério, mas nele como que afundados – de tal forma que já duvidas se sob uma película opaca e incompreensível eles ainda existem e te pertencem –, eis que avanças o tronco tentando que pelo menos as mãos estejam fora do alcance dessa força de que não conheces origem nem limites.
Como aquele que diz adeus quando se despede de alguém que ama e não sabe se voltará a ver, moves então a tua mão direita, que aparece, como da manga de uma camisa comum, no lado de fora do Mistério onde caíste sem seres convidado e sem desejares. Mas de fato a tua mão não se despede de ninguém – talvez peça ajuda.
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