Coisa linda para se ver, ouvir e ler a toda hora e não só em vésperas de datas especiais!
Carícias.
Delicio-me sempre com Madredeus.
Vale a pena curtir o link:
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=hCUOQYruotI
A mulher de Lot
(Wislawa Szymborska)
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado
de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que
vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus
pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
In Memoriam (Raul Macedo)
Sugiro que Wislawa
tenha
fumado no hospital
e dito
– daria tudo
por
um café, e alguém
com uma
almofada apoiaria
sua
cabeça, e ela
pensaria
em dizer
que não
perdeu ainda a cabeça,
mas
não diria, não era
preciso,
e ela ,sorrindo,
sabia
desde o começo,
o
algodão do estofo da cama
o soro,
os aparelhos,
ao rés da música abrindo
lá fora
alguns pássaros
na alva
da janela,
olharia
a relva sem olhar
para
trás, para os civis
(apenas
pra moça de xale
que
alimentava as pombas)
sentava
num banco, elegante,
esperava,
esperava
e
tomava seu café
como
quem abraça um amigo.
.
Nossa... essa música é linda...
ResponderExcluirObrigado.
Raul é um desgramado! Madredeus é uma desgrama!
ResponderExcluirWislawa é desgramada também! Tudo uma desgrama de bão, Vera!!!
Desgrama de bāo é seu comentário. Valeu, Carla!
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