Todos à minha volta sabem do meu grande envolvimento com o Grupo Eco do Santa Marta e da enorme admiração que tenho por Itamar Silva, fundador e presidente do grupo, um homem de garra e fibra, de integridade, inteligência e humanismo incontestáveis.
O Diablog tem a satisfação de acolher e registrar duas gotas preciosas vinculadas ao trabalho e à história do Grupo Eco e da Favela de Santa Marta: a primeira é Todas as Vidas, poema de Cora Coralina que nos encanta particularmente na interpretação magnífica da Geralda, integrante do grupo cênico-musical Eco do Santa Marta, que dirijo há dez anos; a outra é um simples relato de um acontecimento corriqueiro num dia comum da vida naquela favela – um instantâneo absolutamente distante da rotina de muitos moradores "do asfalto" daquele bairro incrustado no coração da zona sul do Rio de Janeiro.
TODAS AS VIDAS
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
na minha vida –
a vida mera das obscuras.
(Cora Coralina)
Deu macaco na manhã de domingo de Santa Marta
O domingo no Santa Marta seguia sua rotina. Moradores acordando um
pouco mais tarde; uns porque é domingo e aproveitam para tentar descansar o
corpo da semana pesada de trabalho. Outros dormem um pouco mais, por só terem
conseguido pegar no sono às 6 horas da manhã, quando acabaram os bailes e os
eventos da comunidade que bomba. E outros ainda estão “zumbizando” pelos
caminhos. A madrugada foi tão boa que a vontade é de não dormir e prolongar o
prazer da festa.
A rotina é quebrada por um estrondo que ecoa por quase todo o
Morro. Imediatamente o som alto de um animado forró que já saía de uma das
casas emudece. Quem estava na padaria para comprar o pão apressou-se em fazer o
seu pedido, pois sabia que a próxima fornada poderia demorar. O estrondo veio
do estouro de um transformador da Light e deixou metade do Morro sem energia
elétrica.
Logo a notícia se espalhou pelos caminhos mais ou menos
silenciosos da favela: “Foi o macaco! Ele está todo queimado!” “Ele morreu?” “Ainda
não! Tá estrebuchando, com metade do corpo todo queimado!”
Duas horas depois a Light estava no local consertando o
transformador desarmado pelo macaco. Em seguida, o Morro volta à sua rotina. O
vizinho coloca outra vez o mesmo cd de forró. Um pouco mais distante, um
saudosista dispara músicas da década de 1970. E vários outros sons misturados
e indecifráveis tomam conta desta quase hora do almoço. O dia está chuvoso e
faz frio no Santa Marta. A padaria ligou o forno elétrico e prepara mais uma
das várias fornadas do dia. No entanto, uma pergunta que não quer calar! E o
macaco? Morreu?
Seu corpo está encolhido numa parte do caminho, próximo ao poste
que sustenta o transformador danificado.
Um garotinho se aproxima, puxando o irmão menor pela mão: “Vem,
vem ver o macaco!” E logo outros curiosos se aproximam. Um misto de interesse, pena e medo reflete o sentimento daquela pequena multidão
que quer comprovar a existência de um culpado pelas horas sem energia.
Uma dúvida toma conta da favela: de quem é a responsabilidade pela
retirada do corpo do macaco daquele local? Alguém sugere ligar para o 199, 193
(?), mas a contra-argumentação é imediatamente ouvida – eles demoram e só
atendem se for gente!
“Chama o bombeiro!”, sugere outro, rindo: “Ih, bombeiro só retira gatinho de telhado que ameaça
viúva indefesa.”
“O mais correto é chamar a sociedade protetora dos animais”, fala
uma senhora com muita autoridade. Mas a afirmação é quebrada por um
adolescente: “A sociedade só protege animais vivos.”
E agora, quem poderá nos ajudar? Eu, Chapolin Colorado!
E a alegria volta a reinar. Cada um vai para seu canto e o dia
segue com seus barulhos habituais na favela de Santa Marta.
Obs.: Apesar da grande movimentação em torno do ocorrido, muitos
moradores continuaram dormindo e, certamente, até duvidarão desta história! Em
sua opinião, de quem é a responsabilidade pelo corpo do macaco?
(Respostas para o facebook do Grupo Eco. Os comentários serão
publicados na próxima edição do Jornal.)
(Itamar Silva)