Constato que uma síndrome nos acomete com frequência: a do tempo desperdiçado, com a consequente busca pela compensação ou reparo.
Uns lamentam o tempo perdido fora do carregar de pedras na estrada única que leva ao sucesso.
Outros lamentam o tempo detido em bares e botequins ou em conversas que só podem levar ao breu ou, no máximo, a lugar nenhum.
Outros ainda, mais sofisticados na neura comum, condenam até o tempo dedicado a estudos, leituras, viagens, afazeres fora de propósito específico, valor ou meta bem determinada.
Há os que vão mais longe e chegam ao cúmulo de execrar o tempo despendido uma vida inteira... no trabalho!!!
Sem desmerecer outras possibilidades para nos posicionarmos diante das questões que envolvem a noção de tempo em nossas vidas, arrisco uma boa sugestão e mantenho a pincelada na questão só para emoldurar as pérolas de hoje.
Sugiro que nada há de melhor do que uma boa sessão de filmes de Abbas Kiarostami, o cineasta iraniano, a nos instigar à atemporalidade, às viagens de todo tipo, ao movimento, ao atravessar de barreiras, ao enfrentamento tanto dos acasos quanto das obviedades, à comunicação frenética de nosso tempo em contextos variados, à verificação da singeleza e do delicado em roupagens de permanente mutação, tudo isso como pano de fundo para o nosso constante buscar de aconchego físico, mental e espiritual. Sem contar com a injeção de autoestima a que somos presenteados, pela oferta generosa de um cardápio intelectual digno e respeitoso servido de bandeja!
Quatro filmes de Abbas Kiarostami, importantes não só para os cinéfilos de plantão, mas para aqueles que buscam se antenar com as linguagens de fronteira de nossa precária civilização:
1) Gosto de cereja (1997)
2) O vento nos levará (1999)
3) Dez (2002)
4) Cópia fiel (2010).
Um deleite de incomensurável conteúdo residual para reflexões e considerações ad eternum.
E por falar em deleite, compartilho com os nobres leitores deste Diablog nº14 alguns versos magníficos do meu querido amigo e parceiro, um dos mais geniais poetas que conheço: Cacau Leal.
Chave do Tempo (Cacau Leal)
pousamos na beira do rio sem nome
os seixos, um mistério de milênios,
dormem indatados
polidos antes pelas nossas lágrimas
os seixos rolam agora
sob o impulso dos dedos
onde reside a chave do tempo
de noite
na escuridão
sozinhos e sem luar
como podem –
alguém há de perguntar –
estes ovos inanimados
brilhar?
e eu,
subtraído de tua claridade,
guardo silêncio
eu, não sei se eu os seixos que apago
Cena XXIX (do livro Cabo Frio: o vento fala, de Cacau Leal)
...aqui sim começava uma nova etapa aventura sol e lua e música dos
ventos e os brancos imensos e os azuis do céu do mar e os lençóis d'areia
dunas luz caju urucum pimenta vermelha sal grosso afagos afetos
camarão siri ciclones de estrelas anzol espinhos coco abacaxi lagartos
restinga maracujá moinhos conchas olhos cabeça coração temporais
e peixes e barcos e cal e calcário musgos verdes coqueirais algas puçá
pássaros sol água ferrosa arrastão praia manhãs crepúsculo noite
amanhã hoje vozes pão café papagaio varanda pode não pode aceito
vou cheguei estou sei sonhei virá virão porta soleira maré açúcar sal
farinha areia portão lampião mosquitos mormaço chuvas telhas sono
flores mel cirros lágrimas varal qual mal bem bom não vai vem...
Lição de um gato siamês (Ferreira Gullar)
Só agora sei
que existe eternidade
é a duração
finita
da minha precariedade
O tempo fora
de mim
é relativo
mas não é o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
– dura eternamente
enquanto vivo
E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)
Canção do dia de sempre (Mario Quintana)
Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
como essas nuvens do céu...
E só ganhar, toda a vida,
inexperiência...esperança...
E a rosa louca dos ventos
presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
das outras vezes perdidas,
atiro a rosa do sonho
nas tuas mãos distraídas...
Lindo blog. Parabéns.
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