Chove.
O arredondado múltiplo de guarda-chuvas compõe uma esteira
colorida sob minha janela.
O porteiro do prédio em frente mastiga seu sanduíche enquanto
vaga o olhar pelo cinza histérico do asfalto vigiado pelo teto verde das
amendoeiras.
O homem das frutas se protege com o toldo improvisado e um
capuz.
Ninguém para pechinchar o colorido frugal reluzente da
bancada.
Nesta dobra de esquina, esticada até o largo onde descansam
os olhos de Deus,
esse derramar esbelto, retocado em brilhos e toques
sonolentos,
um coroar de umidade rala,
uma preguiça lânguida
de buzinar longínquo.
Nenhum pássaro.
Nenhum mico.
Nenhum esquilo.
Nenhum excepcional pensamento.
Vozes e sons dispersos.
Um latido de cachorro por detrás de uma vidraça.
O badalar de um sino.
Até parece que a vida anda mansa
e que mórbidas ilusões, guerras, golpes,
traições, tramoias, mamatas, artimanhas
fugiram céleres do dicionário.
Vez por outra:
vontade de atender ao chamado masai
e me abrigar com os ventos
na cratera de ngorongoro,
vontade de galgar os céus de infinitos mistérios
e me garantir uma vaga entre o silêncio galáctico sumidouro.
Quedo-me entre acasos e sonhos,
além de previsíveis enganos.
Agora é noite.
Bem tarde.
Há encantos e pavores.
Morcegos amam amendoeiras.
O tempo e seu bordejar confuso
de forçosos contornos
e aragens
só fazem plantar incoerências
em suas frouxas margens.
Mas eu, que já me contento
com o andar de tamancos,
os desejos restritos
e o simples saber que
Gago Coutinho não era gago,
debruço-me sobre os segredos desse mundo árido
e atiro uma flor à quietude
do soturno largo.
(Vera Versiani)
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